‘Tár’: o que há por trás do filme polêmico sobre regente abusiva
Indicada ao Oscar, Cate Blanchett vive personagem controversa no novo drama do diretor Todd Field
![SINFONIA DA QUEDA - Blanchett como Tár: em transe diante da orquestra -](https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2023/01/ABRE-1-TAR03.jpg2_.jpg?quality=90&strip=info&w=1280&h=720&crop=1)
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Numa conferência da influente revista The New Yorker, Lydia Tár é questionada sobre a função do maestro diante da orquestra. O movimento da batuta e das mãos, cutuca o entrevistador, não seria uma mera marcação de compassos substituível por aquele aparelhinho chamado de metrônomo? Ela discorda, e pontifica: reger é controlar o tempo — não há poder maior do que ditar quando uma sinfonia começa e termina. Por boa parte das duas horas e meia do intrigante Tár, já em cartaz no país, sua protagonista encarna com voracidade esse papel de senhora do tempo. Credenciais não lhe faltam: após reger grandes orquestras americanas, ela se tornou titular da mítica Filarmônica de Berlim; é respeitada por estudos musicais de povos indígenas e pela formação de regentes femininas; pertence, por fim, ao seletíssimo clube das personalidades EGOT — aquelas que somam os quatro maiores prêmios do showbiz americano: Emmy, Grammy, Oscar e Tony.
Vivida com energia mesmerizante pela australiana Cate Blanchett, Lydia Tár não é uma pessoa de verdade, mas resume certa categoria que o mundo conhece bem: os humanos que chegam ao topo e, de tão inflados, tornam-se intimidadores, ditatoriais — ou coisas piores. É um posto, claro, quase sempre masculino. Mas calha de Tár ser a primeira mulher a mandar na orquestra que já foi regida por machos alfa como o austríaco Herbert von Karajan — e pode se equiparar aos antecessores com feitos como uma gravação da Quinta Sinfonia de Gustav Mahler, única das nove completas criadas pelo compositor que ainda não registrou com o conjunto berlinense. Do alto de seus louros, Tár jura que ela nunca teve problemas com o machismo: “No que diz respeito ao preconceito de gênero, não tenho do que reclamar”.
![APOIO-TAR-04.jpg OBSESSÃO - A jovem russa e a regente assediadora: fetiche pela virtuose do violoncelo -](https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2023/01/APOIO-TAR-04.jpg.jpg?quality=70&strip=info&w=1024&crop=1)
Ocorre que, ao contrário do mundo em que viveu Karajan, as questões de gênero são um ponto sensível na realidade de hoje — inclusive na Filarmônica de Berlim, onde tudo agora é decidido democraticamente pelos músicos. Daí vem a provocação que faz de Tár — primeiro trabalho do diretor americano Todd Field desde o memorável Pecados Íntimos, lá se vão dezesseis anos — o filme mais divisivo do Oscar 2023, com seis indicações (veja abaixo). A regente é lésbica assumida e manipuladora contumaz — a ponto de usar o casamento com a spalla Sharon (Nina Hoss) como trampolim para chegar aonde chegou. Tár é, acima de tudo, uma predadora sexual que transforma as vítimas em zumbis à sua volta, da assistente Francesca (Noémie Merlant), que se exaspera com uma promoção que nunca vem, à desesperada ex-pupila Krista, caída em desgraça por alguma razão obscura. A jovem violoncelista russa Olga (Sophie Kauer) é seu novo objeto de desejo, e a regente dá bandeira ao escolher uma peça em que ela brilha, o Concerto para Violoncelo do inglês Edward Elgar (1857-1934), para completar o menu da gravação de Mahler. Mas Olga surge bem no ponto de inflexão em que Tár vai desabar do céu ao inferno.
Na contramão das produções no espírito do #MeToo, Tár introduz elementos incômodos ao tratar do assédio. Obviamente, colocar uma mulher como abusadora é a maior causa de furor. A maestrina americana Marin Alsop se disse ofendida e acusou o filme de sabotar a luta feminista. Na direção oposta, há quem denuncie o longa pela suposta defesa da cultura do cancelamento, já que a queda de Tár passa pela propagação de vídeos virais e campanhas nas redes sociais.
O nível de desorientação nas críticas só ilumina a maior virtude de Tár: a de torpedear com sutileza certezas preestabelecidas. Field criou um fascinante quebra-cabeça em que muito do que acontece não é dito ou mostrado — e a trama ganha uma riquíssima segunda vida na imaginação do espectador e na internet. Fica no ar a verdadeira natureza da relação da regente e suas assistentes. Ao se ligar os pontos, contudo, os pecados de Tár surgem cristalinos e se adivinha sua via-crúcis pública.
O diretor cria, sobretudo, uma desafiadora celebração da música clássica. As referências (leia abaixo) vão do cenário à estrutura do filme. A estranha opção de iniciar a narrativa pelos créditos finais é um modo de lembrar que, assim como maestros, cineastas exercem um poder avassalador sobre centenas de anônimos. Mas é também uma alusão à Quinta Sinfonia de Mahler: o compositor de origem checa, afinal, abre sua obra singular de forma igualmente anticlimática, com uma marcha fúnebre.
Beethoven: as muitas faces de um gênio
Se Field é um mestre das nuances, a oscarizável Cate Blanchett é quem torna Lydia Tár assustadoramente humana. A atriz estudou regência e piano para filmar, e teve um choque quando Field avisou que começariam pelas cenas de concerto com uma orquestra alemã de verdade. Decisão sábia: bastam suas expressões no púlpito para captar tudo sobre Tár. A princípio inquebrantável como a arquitetura brutalista da Berlim que a cerca, ela aos poucos deixa entrever fissuras. Enquanto se desdobra entre a tentativa de se defender e os preparativos da sinfonia de Mahler, Tár encara seu maior fantasma: na madrugada, é assombrada por seu metrônomo funcionando desgovernado dentro de um armário. É o tempo avisando que lhe escapou das mãos.
DESAFIO MUSICAL
Os quatro sujeitos (nada) ocultos que são a chave para entender a trama de Tár
![GettyImages-517443562.jpg Gustav Mahler](https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2023/01/GettyImages-517443562.jpg.jpg?quality=70&strip=info&w=1024&crop=1)
Gustav Mahler
Pano de fundo do filme, a singular Quinta Sinfonia de Mahler (1860-1911) resume o espírito do compositor de origem checa: a meio caminho entre a tradição romântica e a subversão modernista, ela introduz dubiedade (e mistério) na miríade de sentimentos que a música consegue provocar
![GettyImages-142007402.jpg Jacqueline Du Pré](https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2023/01/GettyImages-142007402.jpg.jpg?quality=70&strip=info&w=1024&crop=1)
Jacqueline Du Pré
Virtuose do violoncelo, a inglesa (1945-1987) teve destino trágico: saiu de cena no auge em razão de uma esclerose múltipla — que a levaria à morte catorze anos depois. Sua célebre versão do Concerto para Violoncelo, de Edward Elgar (1857-1934), tem lugar de realce no filme
![AP403055863523.jpg Herbert Von Karajan](https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2023/01/AP403055863523.jpg.jpg?quality=70&strip=info&w=1024&crop=1)
Herbert Von Karajan
O austríaco que regeu a Filarmônica de Berlim como ditador por 33 anos inspira a abusiva personagem de Cate Blanchett. Ex-membro do Partido Nazista, Karajan (1908-1989) era invejado pela ex-premiê inglesa e amiga Margaret Thatcher por razão singela: ninguém ousava desobedecê-lo
![GettyImages-468989785.jpg Leonard Bernstein](https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2023/01/GettyImages-468989785.jpg.jpg?quality=70&strip=info&w=1024&crop=1)
Leonard Bernstein
Mentor da protagonista de Tár, o maestro (1918-1990) rompeu a fronteira entre clássico e popular — são dele composições de musicais como West Side Story. Ao conduzir o Adagietto da Quinta Sinfonia de Mahler no funeral do político americano Robert Kennedy, em 1968, tornou a peça inescapável
Publicado em VEJA de 1º de fevereiro de 2023, edição nº 2826
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