Spin-off de ‘John Wick’ reforça onda de violência e sexo na TV
Série 'O Continental' reforça um contraste peculiar do streaming: o sexo e a violência nunca foram tão explícitos — mas o recato também ganha força
Coberto de sangue após uma briga, John Wick entra cambaleante no Continental. O hotel imponente é, na verdade, uma fachada para o crime organizado nova-iorquino: trata-se de um território neutro onde mafiosos e assassinos se encontram, mas estão proibidos de matar uns aos outros. Comprimindo um ferimento de bala no abdome, Wick pergunta ao concierge se o serviço de lavanderia dali é bom — para além de assassino temido, ele também é reconhecido por seus belíssimos ternos sob medida. “Nenhuma lavanderia no mundo, infelizmente, é tão boa assim”, responde o concierge, impassível. Wick acena com a cabeça, aceitando os fatos. Um dos personagens mais letais e, quem diria, cativantes do cinema, vivido por Keanu Reeves, John Wick é um case peculiar em Hollywood: fruto do cinema indie, o protagonista que dá nome à saga iniciada em 2014 soma mais de 1 bilhão de dólares em bilheteria com quatro filmes. Agora, seu universo de tiro, porrada e bomba se expande para o streaming: acaba de chegar ao Prime Video, da Amazon, a série O Continental: do Mundo de John Wick, ambientada no famoso hotel do título, nos anos 1970, cinco décadas antes dos filmes. Nos dez minutos iniciais, a produção logo mostra a que veio: um roubo ousado e um tiroteio deixam um rastro de mortes. O evento afeta o protagonista da nova série, o charmoso golpista Winston Scott (Colin Woodell), que nos filmes da franquia é o temido gerente do hotel.
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Assim como o Continental é um lugar seguro para seus hóspedes controversos, o streaming vem se revelando um terreno criativo frutífero e sem amarras para séries destinadas aos maiores de idade — uma liberdade até então inédita e inconcebível na grade da TV. Desse modo, não é surpresa que O Continental tenha sido lançado uma semana antes de Gen V. A nova série, derivada da popular The Boys, estreia na sexta-feira 29, também no Prime Video, amplia o universo dos super-heróis sacanas e violentíssimos — receita que demanda estômagos ainda mais fortes que os dos fãs de John Wick. Não faltam às plataformas títulos populares e premiados que provocaram burburinho ao cruzar as linhas do decoro em matéria de sexo e violência: da pioneira Game of Thrones, na HBO Max, a Round 6, a série mais vista da história da Netflix — ou das picantes Elite e Bridgerton, que garantiram à plataforma o apelido de “sexflix” —, as opções são abundantes.
Mas, como é de conhecimento geral, toda ação traz consigo uma reação: uma onda conservadora, em consonância com movimentos políticos e religiosos, vem rechaçando esses títulos — e aconselhando seus adeptos a buscar outro tipo de entretenimento. Termômetro de um mundo polarizado, o streaming virou palco de uma batalha de extremos: enquanto um lado aposta no explícito, o outro impulsiona a popularidade de tramas novelescas e pudicas, como os virginais doramas ou os folhetins turcos.
Até faz pouco tempo, cenas de erotismo, nudez e agressão, entre outros temas sensíveis, eram praticamente uma exclusividade do cinema — ambiente com maior controle sobre quem entra e sai da sala. Na TV, produções assim eram relegadas a horários noturnos e muitas vezes editadas. Não por acaso, Round 6 demorou dez anos para sair do papel: o drama sul-coreano sobre um jogo mortal entre pessoas endividadas foi rejeitado por diversos canais até encontrar um lar na Netflix. Do mesmo modo, não foi uma surpresa quando o programa causou furor em pais e educadores, que se horrorizaram ao ver a popularidade da série crescer entre crianças, provocando abaixo-assinados e boicotes contra a plataforma.
Para além do dramático dilema do controle parental — que só o Disney+ resolveu, criando uma senha extra para acesso a títulos para maiores de 18 anos —, as plataformas se viram diante de um pedido incomum: usuários com motivações diversas, entre elas a possibilidade de assistir à TV com a família sem constrangimentos, clamam pelo infame “skip sex button”. Trata-se de um botão que dá a opção de pular cenas eróticas no mesmo modelo do comando que lima as aberturas — em 2019, a plataforma da rede inglesa BBC aderiu ao sistema.
Enquanto isso, aplicativos paralelos oferecem serviços de edição personalizada. O americano Clearplay cobra 7,99 dólares mensais por uma extensão no navegador com a qual é possível filtrar imagens e falas: o assinante escolhe o que não quer ver ou ouvir em graus distintos, desde uma alusão ao sexo até o ato em si. A proposta é a mesma no também americano VidAngel. A empresa cristã criada em 2013 oferecia versões on-line editadas de filmes. Claro, acabou na mira dos estúdios e foi condenada a pagar 62 milhões de dólares em direitos autorais — um acordo diminuiu o montante e hoje a plataforma aplica seus cortes por 9,99 dólares mensais, contanto que o usuário também tenha a assinatura da plataforma em que o programa está. Na era dos extremos, quem pode usar os dois olhos é rei.
Publicado em VEJA de 22 de setembro de 2023, edição nº 2860
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