Scorsese narra assustadora história real em ‘Assassinos da Lua das Flores’
O diretor investiga até que ponto a ganância e o preconceito contaminam as relações humanas — entre elas, o amor de uma indígena e um americano branco
Assim como outros cineastas de sua geração, Martin Scorsese, de 80 anos, cresceu assistindo a clássicos do faroeste. Ele planejava, um dia, dirigir uma produção do gênero. A oportunidade surgiu com os direitos de adaptação do livro do jornalista americano David Grann, que destrinchou uma chocante e pouco conhecida história real que continha todos os bons elementos de um western — e um tanto mais que a ficção não se atreveria a inventar. No fim do século XIX, os Osage, povo nativo americano, ficou riquíssimo ao encontrar petróleo nas terras de sua reserva, em Oklahoma. Logo, o local se tornou ímã de homens brancos mal-intencionados em busca de uma lasca de tanta prosperidade: na cotação de hoje, a fortuna dos indígenas valeria 400 milhões de dólares. A ganância culminou em tragédia: entre 1921 e 1925, mais de sessenta nativos morreram misteriosamente. Seus bens foram parar nos bolsos de forasteiros, os quais, de alguma forma, haviam se envolvido com as vítimas, seja via matrimônio, seja por meio da tutela de investimentos — o governo americano impôs a muitos Osage a tutoria financeira por considerá-los incapazes de administrar o próprio patrimônio.
Scorsese escreveu o roteiro com o mesmo protagonista do livro, o agente do FBI Tom White, responsável por investigar as mortes. Leonardo DiCaprio daria vida ao detetive, não fosse um pitaco do ator que tirou o sono do cineasta. “Onde está o coração dessa história?”, questionou DiCaprio, um ativista de causas indígenas. A pergunta carregada de significado fez Scorsese recomeçar do zero o roteiro do impactante Assassinos da Lua das Flores (Killers of the Flower Moon; Estados Unidos; 2023), coprodução entre Paramount e Apple TV+ que estreia nos cinemas na quinta-feira 19.
Subvertendo os amados faroestes do passado, Scorsese tirou o agente do FBI do protagonismo, evitando cair na armadilha do dito white savior (pessoas brancas que posam de redentoras de minorias). Mais importante ainda, limou o elemento “mistério” que punha a natureza dos indígenas em xeque. As mortes chegaram a ser atreladas a uma suposta saúde física e mental fraca dos nativos — quando foram, de fato, assassinatos orquestrados por pessoas que desprezavam os Osage e cobiçavam seu dinheiro. O que era para ser um western clássico, de ação e confronto, se converteu assim em um estudo da índole humana e do poder destrutivo do preconceito — narrativa sintetizada no complexo (e improvável) romance entre um golpista e uma indígena.
Respondendo à pergunta de DiCaprio, o coração da trama estava na relação de Ernest Burkhart (vivido pelo ator) e Mollie (Lily Gladstone, excepcional). Ele era um ex-soldado tentando a sorte na região e ela, uma riquíssima Osage. Então exemplo de sucesso da família miscigenada, o casal teve três filhos e parecia estar indubitavelmente apaixonado. Ao longo do genocídio silencioso, a família de Mollie foi uma das mais afetadas, e Ernest estava por trás da tragédia.
Dissimulado e charmoso, mas ao mesmo tempo fraco e manipulável, o personagem de DiCaprio era parte do conluio orquestrado por Bill Hale, interpretado com sangue nos olhos por Robert De Niro. Um autoproclamado defensor dos Osage, Hale aprendeu a língua local e os costumes da aldeia para lentamente minar, de dentro para fora, as forças e defesas das vítimas. Ele trouxe para a reserva profissionais que lhe serviram de lacaios, como xerifes e médicos, os quais lucravam com os indígenas, mas não os defenderam como deveriam. É curioso, mas não surpreende o fato de que Osage fique a 80 quilômetros de Tulsa, palco de um terrível massacre de negros de classe média pela população branca em 1921 — outro crime motivado não só pelo racismo, mas pelo crescimento econômico de uma minoria.
Com três horas e 26 minutos de duração, Assassinos da Lua das Flores é o segundo maior filme de ficção de Scorsese, perdendo por pouco para O Irlandês, que tem momentos tediosos em suas três horas e 29 minutos de duração — defeito que o novo filme, ainda bem, não tem. Ávido investigador da violência humana, especialmente a masculina, e da história de Nova York, sua terra natal, Scorsese atingiu novo patamar de maturidade ao deixar sua zona de conforto e se render a uma visão de mundo distinta. Para driblar acusações de apropriação cultural, o diretor e o elenco pediram autorização legal e simbólica dos Osage para contar essa história, que foi rodada na reserva e teve ampla participação de indígenas, tanto atrás como na frente das câmeras. Nesse mergulho, Scorsese percebeu que os Osage são um povo brando, de poucas palavras e muita sutileza, que se viu contaminado pela força avassaladora do dinheiro. Retratá-los sem vitimismo, porém, foi um desafio extra, cumprido com louvor graças à coprotagonista Lily Gladstone — já cotada para concorrer ao Oscar de melhor atriz em 2024.
Para além de representar uma personagem real, Lily funciona como personificação dos sofrimentos dos Osage (povo ao qual a atriz não pertence, embora tenha pai indígena). É ela, afinal, o coração pulsante que DiCaprio e Scorsese procuravam. Sagaz, sua personagem sabe do interesse dos homens em sua fortuna, mas não se priva de viver o romance. Diabética, vê o corpo definhar enquanto seu povo padece. A ajuda do FBI só acontece após uma sábia jogada dela e de outros indígenas. A seu lado, DiCaprio brilha ao dosar a ambiguidade: teria Ernest de fato amado a esposa ou apenas seu dinheiro? Tudo indica que ele amava ambos — e, por isso, a farsa começou a ruir. Quem cultiva paixões perigosas deve estar atento aos riscos.
Publicado em VEJA de 13 de outubro de 2023, edição nº 2863