Poker Face e mais: detetives femininas invadem seara masculina nas séries
Elas desvendam crimes com talento e humor — e dão um toque feminista ao filão

Charlie Cale tem um dom estranho e inexplicável: ela simplesmente sabe identificar se alguém está mentindo. A moça chegou a tirar vantagem dessa habilidade nas mesas de pôquer de Las Vegas, irritando donos de cassinos. Por segurança, Charlie se aposentou da jogatina e adotou uma vida de desapego: ostentando uma farta cabeleira ruiva desalinhada, virou garçonete, se instalou em um trailer sem glamour e descobriu que dinheiro nenhum traz a paz de uma existência pautada no “deboísmo” — ou seja, no levar a vida “de boa”. Tranquilidade, contudo, não é a palavra ideal para descrever as aventuras de Charlie na divertidíssima série Poker Face, que acaba de ganhar uma segunda temporada na plataforma de streaming Universal+, com episódios semanais às sextas-feiras. Interpretada por Natasha Lyonne, a protagonista vê sua rotina pacata acabar quando desafia um empresário criminoso, papel de Adrien Brody — uma das muitas celebridades que participam da trama. Em fuga pelas estradas dos Estados Unidos, ela conhece tipos variados e, a cada episódio, se vê em meio a casos de mortes misteriosas — os quais desvenda ao sacar quem são os mentirosos. Não demora, claro, para que ela chame a atenção do FBI.

Poker Face é uma dentre as novas e afiadas produções da TV que ousam desafiar a onipresença masculina em mistérios policiais. Tradição ilustre na literatura que encontrou terreno fértil em adaptações de filmes e séries, as tramas de detetives superinteligentes, sagazes e um tanto narcisistas têm expoentes notáveis como Sherlock Holmes, de Arthur Conan Doyle; C. Auguste Dupin, de Edgar Allan Poe; e Hercule Poirot, de Agatha Christie. A autora inglesa, aliás, mestre feminina do mistério policial, deu ao mundo uma das poucas heroínas a furar a bolha: a idosa Miss Marple, que ganhou diversas encarnações em produções britânicas. Para além de ter as qualidades básicas dos colegas homens, Marple ainda transforma o preconceito em vantagem: subestimada por seu gênero e idade, ela passa despercebida pelos criminosos.
Julgamento parecido ainda afeta as detetives de hoje — o que adiciona sabor extra aos momentos em que elas dão a volta por cima. Na série Uma Mente Excepcional, que virou sucesso na plataforma Disney+ neste ano, a atriz Kaitlin Olson interpreta uma mãe solteira de três filhos, sincerona e com roupas cafonas, mas de QI altíssimo — qualidade que faz com que seja promovida de faxineira da delegacia a policial ávida por desvendar homicídios. Estrela de Stranger Things, Millie Bobby Brown roda atualmente seu terceiro filme da saga Enola Holmes. A irmã mais nova de Sherlock enfrenta não só o parente famoso como também a falta de autonomia das mulheres na Inglaterra vitoriana — isso às vésperas da primeira onda feminista. Cada um dos dois primeiros longas passou de 60 milhões de horas assistidas na Netflix, apenas no primeiro mês de exibição.

Enquanto essas tramas subvertem com sucesso os padrões do gênero detetivesco, Poker Face vai além e se entrega a ironias com uma pitada hitchcockiana. Invertendo a fórmula do “whodunnit”, termo que designa as histórias nas quais detetive e público descobrem juntos quem é o assassino, a série criada por Rian Johnson, o mesmo do filme Entre Facas e Segredos, aposta no chamado “howcatchem”. Trata-se de um mote na linha “como pegar o assassino”, explorado com primor por Alfred Hitchcock em clássicos como Disque M para Matar. Cada episódio de Poker Face começa mostrando o crime, sempre com alguma celebridade no elenco — a nova temporada abre com Cynthia Erivo, estrela de Wicked, que se desdobra em cinco papéis simultâneos. A graça reside em ver como a protagonista Charlie vai desvendar o caso.

Ao contrário das colegas que trabalham como detetives, ela não quer formalizar a função. “Charlie é uma mistura de Philip Marlowe com um toque de O Grande Lebowski”, disse Natasha a VEJA sobre as inspirações para a personagem — o primeiro é um detetive canastrão e o segundo, um desocupado sem ambições. O que a motiva é a curiosidade patológica. “Ela quer se intrometer na vida dos outros para ajudá-los”, diz a atriz. Suas peripécias chamam a atenção do FBI, que tenta contratá-la sem sucesso. Vira e mexe, ela até pede ajuda ao agente vivido por Simon Helberg (The Big Bang Theory). Charlie, porém, sabe que sua principal aliada é outra: a velha e boa intuição feminina.
Publicado em VEJA de 16 de maio de 2025, edição nº 2944