‘Os Fantasmas Ainda Se Divertem’ honra legado do clássico dos anos 80
Tim Burton volta às raízes com sequência do clássico dos anos 1980 no qual médiuns e almas penadas cativaram adultos e crianças
O peso da idade é patente em Lydia (Winona Ryder). Se na adolescência ela era rebelde, curiosa e ousada, na vida adulta está acuada e dócil. As razões para a mudança vão além das imposições da maturidade. A intrigante personagem de Os Fantasmas se Divertem (1988) está agora, mais de trinta anos depois, cansada do dom mediúnico que lhe permite ver mortos o tempo todo — e fez dela estrela de um bizarro programa de TV. Ficou noiva de um sujeito desagradabilíssimo e, como dita o carma, tem uma filha tão insubmissa quanto ela fora um dia. Quem lhe dá um chacoalhão é sua madrasta, Delia (Catherine O’Hara): ela pede que Lydia procure dentro de si a jovenzinha insolente e imaginativa de outrora — e lhe dê espaço para voltar à tona. Mesma dica vale para quem assiste a Os Fantasmas Ainda se Divertem (Beetlejuice Beetlejuice, Estados Unidos, 2024), aguardada sequência do filme que deu fama a Winona e ao diretor Tim Burton, e já em cartaz nos cinemas.
Os Fantasmas se Divertem [Blu-ray]
A dupla retorna ao cenário de contornos góticos e cores vibrantes juntamente com Michael Keaton na pele e no terno listrado de Beetlejuice — o personagem do título, um demônio fanfarrão à la coach do Além, que curte dar uma mãozinha àqueles que acabam de passar para o lado de lá. No primeiro filme, ele é convocado por um casal de fantasmas para assombrar os novos moradores de sua residência — entre eles Lydia, aos 15 anos. Seres deformados, maquiagens exageradas e a tentativa de Beetlejuice de se casar à força com a adolescente fizeram com que o filme, na época, fosse chamado de “grotesco” pela crítica do New York Times. Mas o sucesso de bilheteria e a longevidade do longa lhe conferiram o selo de cult — e a Burton a credencial de cineasta esquisitão favorito de Hollywood.
Tim Burton: O cineasta icônico e sua obra – Ian Nathan
O diretor americano passou os anos 1970 tentando emplacar sua visão de mundo, que mistura o sombrio e o melancólico a um inesperado humor pueril. Com Os Fantasmas se Divertem, as portas não só se abriram como ganharam tapete vermelho para receber Burton de forma calorosa. Vieram em seguida títulos notáveis, como Batman (1989), Edward Mãos de Tesoura (1990) e a animação O Estranho Mundo de Jack (1993). Sua estética virou grife, apelidada de “burtonesque”. O diretor e sua obra são frutos do clima artístico em ebulição daquele período, quando o cinema de terror e de ficção científica dominava as telas e a música pop esbanjava ousadia e letras debochadas. É difícil imaginar como Os Fantasmas se Divertem se sairia em tempos atuais, entre a correção política de um lado e o conservadorismo religioso do outro: seu protagonista mulherengo nasceu pronto para cair na cultura do cancelamento — e a ironia de um mundo sobrenatural com demônios e possessões, mas embalado para crianças, daria vertigem nos que apoiam a censura de livros em escolas.
O Estranho Mundo de Jack – Tim Burton
A sequência, porém, deve passar ilesa por esse teste de fogo. Beetlejuice ainda é repugnante, mas um tanto mais comedido que a versão anterior. Dessa vez, ele precisa lidar com o passado quando sua ex-esposa vingativa — a italiana Monica Bellucci, namorada de Burton na vida real — sai da caixa onde esteve presa por 600 anos. No plano terreno, Lydia e a filha, Astrid (Jenna Ortega), enfrentam suas diferenças: a jovem é alvo de chacotas na escola por sua família disfuncional — e, para piorar, a garota tem certeza de que a mãe médium é charlatã. A reunião da família no casarão onde tudo começou se dá quando o pai de Lydia, Charles (Jeffrey Jones), morre em um acidente — numa sequência hilária feita em animação stop motion. Sua esposa, Delia, que era uma escultora de mau gosto, virou uma artista visual contemporânea. Ela transforma a casa assombrada do clã em uma instalação sobre o luto — tema que perpassa outros personagens. Se o primeiro filme eternizou a cena de possessão na qual Delia entoa a canção Banana Boat (Day-O), de Harry Belafonte, na mesa de jantar, agora Burton perde a mão num musical romântico e longo perto do fim. O detalhe mancha o longa, mas não o anula. Para além do apelo da nostalgia, o filme mantém sua essência ao defender que, às vezes, as entidades malignas no sótão é que deveriam ter medo de garotas corajosas. Entre mortos e vivos, salvam-se quase todos.
Publicado em VEJA de 6 de setembro de 2024, edição nº 2909