‘Os Fabelmans’: Spielberg expõe segredos de família em belíssimo filme
No drama, diretor retrata com sensibilidade sua infância e adolescência, dos traumas que sofreu até o despertar da paixão pela arte do cinema
Steven Spielberg tinha 6 anos de idade quando foi ao cinema pela primeira vez. Sua mãe prometeu que seria uma experiência divertida, pois veriam um filme sobre artistas circenses. O garoto, contudo, saiu da sala traumatizado. A obra em exibição era o hoje clássico O Maior Espetáculo da Terra, dirigido em 1952 por Cecil B. DeMille (1881-1959). Uma das cenas ficou impregnada na mente do menino: um acidente de trem destrói vagões e lança pessoas e animais selvagens ao chão. O assombro causado pela imagem só foi aplacado quando a mãe lhe sugeriu que filmasse com a câmera do pai a mesma colisão usando seu trem de brinquedo — e que assistisse à cena quantas vezes quisesse, até que ela não lhe desse mais medo. Um método terapêutico parecido embala Os Fabelmans (The Fabelmans/Estados Unidos/2022), em cartaz no país. Com o distanciamento e a clareza da maturidade, o diretor de 76 anos observa as dores e alegrias de sua infância e adolescência usando uma família fictícia como espelho da sua.
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Ao acertar as contas com o passado, Spielberg traça uma comovente carta de amor ao cinema: ele é representado no longa por Sam Fabelman (Mateo Zoryan na infância e Gabriel LaBelle na juventude), um garoto que desde pequeno sonha em fazer filmes. De quebra, o diretor presta um tributo à mãe, Leah Spielberg. Pianista talentosa e dona de um espírito livre, Leah torna-se na ficção Mitzi Fabelman, interpretada com vigor e sensibilidade por Michelle Williams — papel que deve render à atriz uma merecida indicação ao Oscar. Leah morreu em 2017, e o pai de Spielberg, Arnold, em 2020. Diante do luto e do temor causado pela pandemia de Covid-19, o cineasta se perguntou: “Se eu pudesse fazer apenas mais um filme, qual seria?”. A inspiração veio da mãe.
Leah manteve por anos um segredo controverso na vida amorosa — que provocaria uma ruptura drástica na visão de Spielberg sobre a família. Quando o filho ainda adolescente descobriu seu pecado, ela implorou que ele não contasse a ninguém. Décadas mais tarde, a própria mudou de ideia. “Steven, essa história daria um belo filme, não?”, sugeriu Leah, confiante na habilidade narrativa do filho. Para manter a surpresa do espectador, o segredo será mantido neste texto.
A vasta filmografia de Spielberg, que vai de dinossauros e alienígenas à escravidão e ao Holocausto, ganha então um item que lhe faltava: a autobiografia. Seguindo um ensinamento do romancista Ernest Hemingway (1899-1961), que dizia ser necessário a um autor escrever de forma clara sobre o que lhe dói, Spielberg entra agora para um seleto grupo de diretores que ousaram olhar para trás com suas câmeras e mostrar ao mundo emoções que por muito tempo preferiram esconder (veja abaixo).
Os Fabelmans expõe essas questões íntimas com irresistível delicadeza. Como na vida real, seu pai da ficção, Burt (Paul Dano), é um engenheiro brilhante dos primórdios da computação. O trabalho o leva a Phoenix, no Arizona, onde a infância de Sam e de suas três irmãs mais novas é idílica. A casa onde vivem é palco para o charme e a veia artística da mãe, idolatrada pelo marido e pelos filhos. A falsa ideia de família perfeita se desfaz quando Burt é contratado pela IBM e o clã parte para a Califórnia. Lá, Mitzi entra em depressão e uma crise conjugal se desencadeia. No novo colégio, Sam é agredido, verbal e fisicamente, por ser judeu. A escolha do nome Fabelman, aliás, guarda ligação com o preconceito sofrido pelo diretor: Spielberg costumava dizer que seu sobrenome era alemão para esconder a origem judaica — o roteirista Tony Kushner, que assina a história ao lado dele, escolheu a palavra Fabel, que em alemão significa fábula, para batizar a família fictícia.
Em paralelo ao drama principal, a prática de fazer filmes é celebrada como uma artesania. A câmera sempre à mão vira uma extensão do corpo de Sam. Ele cria com as irmãs e os amigos filmes caseiros, de faroestes cômicos a tramas de terror. A edição das produções amadoras é feita com atenção profissional pelo garoto, que corta os filmes manualmente. Num lance de sorte, o rapaz é apresentado ao ídolo, o diretor John Ford (1894-1973) — vivido aqui numa ponta deliciosa pelo também diretor David Lynch. No rápido encontro (que ocorreu na vida real), Ford lhe dá uma dica essencial sobre enquadramento. Mas o garoto já assimilara a lição mais importante de todas: fazer cinema é causar emoções — arte em que Spielberg é mestre.
OLHAR ÍNTIMO
Além de Spielberg, outros cineastas que acertaram contas com o passado em seus filmes
Cinema Paradiso
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Dor e Glória
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O diretor Kenneth Branagh relembra a infância em meio ao caos do conflito civil na Irlanda do Norte nos anos 60 — e o refúgio encontrado na arte
Publicado em VEJA de 18 de janeiro de 2023, edição nº 2824
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