‘Oppenheimer’: as (boas) razões para ver filme sobre pai da bomba atômica
O cineasta Christopher Nolan retrata a tragédia do cientista que se revela tão instável e fissurado quanto o núcleo dos átomos bombardeados por sua invenção
É noite de festa para o físico J. Robert Oppenheimer (1904-1967) nas instalações militares de Los Alamos. Na cidade construída no deserto do Novo México a toque de caixa pelo governo americano, o cientista coordenara por três anos o esforço de 4 000 pessoas para vencer os alemães na corrida pela bomba atômica. Ao custo de bilhões de dólares, o Projeto Manhattan atingiu seu feito estrondoso: dias após o teste bem-sucedido com o artefato batizado de Trinity, duas ogivas arrasaram as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki, em 6 e 9 de agosto de 1945, pondo fim à II Guerra. Diante da plateia eufórica, o homem celebrado como pai da bomba faz um discurso para a torcida, enaltecendo a façanha. Por dentro, contudo, o protagonista de Oppenheimer, superprodução do cineasta britânico Christopher Nolan já em cartaz no país, revela-se tão instável e fissurado quanto o núcleo dos átomos bombardeados por sua invenção. Num delírio macabro, ele vê as pessoas que o ovacionam se esfacelando, como se atingidas pelo cogumelo atômico — que, com seu estampido surdo e avassalador, vai atormentá-lo sem trégua dali até o fim da vida.
Oppenheimer: O triunfo e a tragédia do Prometeu americano
No filme de três horas que se impõe desde já como uma reflexão inestimável sobre a questão atômica, o ator irlandês Cillian Murphy estampa de forma extraordinária um personagem real capaz de sintetizar os dilemas que o domínio de uma tecnologia tão poderosa trouxe para a humanidade e a ciência. Em seu físico esmaecido, e no rosto sulcado, ele exibe as marcas da determinação férrea e do desejo de desvendar o maravilhoso mundo das partículas subatômicas, que então começava a ser revelado pelas teorias de Einstein e, na esteira delas, pela física quântica. Mas o judeu de origem refinada Oppenheimer também carrega em si a melancolia e certa tendência depressiva — algo evidente desde a juventude, quando um impulso nervoso o levou a tentar envenenar um professor com uma maçã, quase precipitando sua expulsão da Universidade de Cambridge. Na esteira da bomba, esses tormentos se multiplicaram, convertendo-o de criador em ativista contra a escalada nuclear — comportamento que só lhe traria consequências trágicas.
Nos tempos de tensão crescente entre americanos e soviéticos que se seguiram à II Guerra, estabeleceu-se uma cruzada cega contra todos que fossem ou parecessem comunistas nos Estados Unidos. Nesse clima de caça às bruxas, Oppenheimer passou de herói nacional a figura incômoda com seu clamor por um exame de consciência coletivo. O cientista era presa fácil: nunca escondeu sua simpatia por causas sindicais e a amizade com militantes de esquerda. Seu irmão mais novo era filiado ao Partido Comunista americano. Até na alcova revelava-se um sujeito com tendências vermelhas: teve um affair com Jean Tatlock (Florence Pugh), socialista libertária que mais tarde seria encontrada morta de forma suspeita; a esposa, Kitty (Emily Blunt), também teve carteirinha do partidão na juventude.
Oppenheimer sempre negou que tivesse se filiado à agremiação comunista, mas o “diz-me com quem andas” tornava sua situação difícil — e a coisa piorou quando os soviéticos explodiram sua bomba e levantou-se a suspeita de espionagem em Los Alamos. Bastou surgir um invejoso arrivista — e o meio científico está cheio deles — para que Oppenheimer virasse troféu da patrulha macarthista. A figura em questão era Lewis Strauss (um soberbo Robert Downey Jr.), burocrata que controlava a nascente comissão americana de energia atômica. Strauss pôs Oppenheimer à frente da instituição, mas depois ficou com ciúme de sua relação com Einstein e não engoliu uma humilhação pública que o colega lhe impôs, arquitetando uma inquirição draconiana para cassar a credencial de segurança do físico — o equivalente a declará-lo persona non grata em cargos públicos e universidades. Turbinada até por depoimentos de apoiadores como o general Leslie Groves (Matt Damon), que confiara a Oppenheimer a condução do Projeto Manhattan, a investigação levou a seu desterro em 1954.
Como proclama a magistral biografia dos americanos Kai Bird e Martin J. Sherwin na qual se baseia o filme, lançada no país pela Intrínseca, Oppenheimer foi, em suma, um Prometeu americano: o personagem da mitologia grega que roubou o fogo dos deuses para dar aos homens, e por isso acabou amarrado a uma pedra e torturado por toda a eternidade. Não há na praça diretor mais equipado para narrar sua ascensão e queda do que Christopher Nolan. Oppenheimer dialoga com outras produções do cineasta, da assombrosa exploração ficcional de um buraco negro (fenômeno que o físico primeiro previu) em Interstellar (2014) à máquina do tempo quântica que move seu trabalho mais recente, Tenet (2020) — em que Oppenheimer é citado de forma explícita.
Ao modo empolgante com que usa a ciência para construir tramas intrincadas, Nolan soma aqui um comentário lapidar sobre a pulsão humana por criar invenções fabulosas em nome de boas causas — e vê-las, imediatamente, se voltarem contra nós. Quando a sombra nuclear volta a assustar o mundo com a guerra na Ucrânia, é um tanto sinistro relembrar o provérbio hinduísta que Oppenheimer balbucia ao explodir a primeira bomba: “Agora eu me torno a Morte, destruidora de mundos”. O físico genial despertou a ira dos deuses, e pagou caro.
Publicado em VEJA de 26 de julho de 2023, edição nº 2851
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