‘O Menino e a Garça’: o que representa o último filme de Hayao Miyazaki
Um dos favoritos ao Oscar de animação trata do luto com delicadeza e encerra com primor o legado do cineasta
Quando decidiu abandonar a aposentadoria, em 2017, para produzir mais um filme — com a promessa de que seria o último, de verdade — Hayao Miyazaki, diretor japonês responsável por filmes encantadores como o premiado A Viagem de Chihiro (2001), atribuiu seu retorno ao fato de ter encontrado uma história que valia a pena contar. E como. Instigado pelo livro How Do You Live, de Genzaburo Yoshino, o cineasta de 83 anos adicionou toques íntimos de sua própria vida para compor O Menino e a Garça (The Boy and the Heron, Japão, 2023), novo filme do Studio Ghibli e um dos favoritos ao Oscar de animação. No longa já em cartaz no país, Mahito, de 13 anos, vê a mãe morrer em um bombardeio ao hospital em que estava internada durante a II Guerra no Pacífico. Dois anos depois, o menino se muda com seu pai, diretor de uma fábrica de peças bélicas, para a mansão de Natsuko, sua tia pelo lado materno e agora madrasta, grávida de seu meio-irmão. Na vida real, Miyazaki e sua família foram forçados a deixar a cidade de Utsunomiya após um ataque na guerra e, aos 8 anos, ele viu a mãe ser internada —e assim permanecer por anos — em decorrência de uma tuberculose. Seu pai também trabalhava com armamento de guerra. No local aparentemente tranquilo do filme, o adolescente encontra uma misteriosa garça falante, que o atrai a uma torre inóspita, prometendo fazê-lo reencontrar sua mãe em uma dimensão onde os mortos podem se comunicar.
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Vencedora do Globo de Ouro e com orçamento estimado em 100 milhões de dólares, a nova obra de Miyazaki já arrecadou 165 milhões de dólares em bilheteria mundial e explora com delicadeza as nuances do luto através de Mahito, além de fazer referência a várias obras do Ghibli — cujas histórias, sempre extasiantes esteticamente, levam seus protagonistas a enfrentar grandes desafios de sobrevivência. “Histórias lógicas sacrificam a criatividade. Eu gosto de romper padrões”, explicou Miyazaki numa das raras entrevistas que concedeu nos últimos anos. Com desenhos feitos à mão, o processo artesanal do diretor japonês é o que sempre o destacou. O filme recente conta com mais de 170 000 quadros, produzidos com Miyazaki à frente de uma lousa e uma enorme equipe atrás o acompanhando — ou, ao menos, tentando seguir sua mente fenomenal.
O aclamado diretor foi a inspiração de uma vasta leva de cineastas e animadores, como James Cameron, que tirou de A Princesa Mononoke (1997) a ideia de Avatar (2009), ou ainda profissionais da Pixar, que após uma visita ao Studio Ghibli desenvolveram nada menos do que a franquia Toy Story. Tal fonte criativa, porém, pode finalmente ter secado, já que o artista japonês deseja um merecido descanso. Na contramão de estúdios gigantescos que se perpetuam com o sucesso, o Ghibli, fundado em 1985 por Miyazaki, com Isao Takahata, morto em 2018, e o produtor Toshio Suzuki, pode fechar as portas de vez.
Em meio à despedida de Miyazaki das telas, não é irônico que um dos personagens de O Menino e a Garça, um idoso de barba e cabelos brancos, fale literalmente que está procurando um sucessor para cuidar do equilíbrio do universo. Os herdeiros do animador, Goro e Keisuke, têm pouco interesse em se igualar ao pai e manter seu legado. Um gigante sai de fininho — e fará muita falta.
Publicado em VEJA de 16 de fevereiro de 2024, edição nº 2880