O desafio das lésbicas de Vale Tudo para superar velho tabu na TV
Na nova versão da novela, a Globo aposta na presença em cena de um casal feminino com direito a um final feliz

Durante uma refeição em família, Cecília (Maeve Jinkings) fala ao irmão Marco Aurélio (Alexandre Nero) — um executivo tradicional e machista — que a pousada que ela abriu em Paraty, no Rio de Janeiro, vai indo bem. Ele então pergunta: “Aquela sua amiga lá está ajudando?”. Cecília dá uma resposta na lata: “Marco Aurélio, a Laís não é minha amiga. A gente está casada há dez anos”. Assim a personagem da novela Vale Tudo pôs, educadamente, cada um em seu quadrado. “Não queremos deixar dúvidas. Elas são um casal”, disse Maeve em entrevista a VEJA (leia mais abaixo).
A necessidade de se posicionar diante do óbvio é um aceno histórico. Por décadas, os casais lésbicos têm sido um tabu periclitante na TV — mais até, curiosamente, que as relações entre gays masculinos. A versão original de Vale Tudo, exibida em 1988, foi um exemplo lapidar disso. Última novela submetida às regras da censura, ela abordou de forma muito disfarçada um par romântico de mulheres, vivido por Lala Deheinzelin e Cristina Prochaska. As duas nunca puderam se assumir como casal — eram descritas como “amigas” que viviam juntas. No remake, portanto, era uma questão de honra para a autora Manuela Dias cravar o estado civil delas. Além de promover outra mudança para fazer justiça: na original, Cecília morria num acidente na metade da novela. Na nova adaptação, ela ficará viva, dando ao casal uma segunda chance.
Assim Vale Tudo se livrará de marcar presença pela segunda vez numa infame lista batizada de Bury Your Gays (enterre seus gays, em português), um inventário on-line atualizado das mortes de personagens LGBTQIA+ na TV mundial. O intuito é expor o clichê narrativo que reflete o descaso — e a rejeição — da sociedade. As lésbicas somam, até o momento, 248 mortes — número alto, levando em conta que são minoria na ficção. Entre as brasileiras, além da Cecília de 1988, também estão no ranking Leila (Sílvia Pfeifer) e Rafaela (Christiane Torloni), de Torre de Babel — a aversão foi tão grande que a Globo matou ambas explodindo um shopping inteiro no folhetim de 1998.
A lista tem seu lado bom: mostra também que a representação lésbica na TV vem crescendo. Ainda são raras, porém, as tramas felizes. Na pop The Last of Us, a dura vida em meio a zumbis atrapalha o romance de Ellie e Dina (Bella Ramsey e Isabela Merced). Já no episódio Hotel Reverie, da sétima temporada de Black Mirror, Issa Rae e Emma Corrin dão vida a um casal apaixonadíssimo, mas trágico.
Quando aceitou o convite de Vale Tudo, Maeve ouviu duas pesquisadoras do meio para saber o que era essencial em uma boa representação de casais femininos. A reivindicação básica: “Queremos não morrer”. Saber que Cecília ficaria viva foi, aliás, o atrativo definitivo para a atriz topar o papel. Bissexual, Maeve namora a cineasta Carolina Markowicz, com quem fez os filmes Carvão e Pedágio. Desde que assumiu a relação, recebeu diversos convites para interpretar lésbicas — mas havia rejeitado todos os roteiros até aqui. “Quis evitar rótulos”, diz. Se a Vale Tudo dos anos 1980 usou a morte de Cecília para falar sobre o direito à herança em união homoafetiva, em 2025 o casal — que fica completo com Lorena Lima na pele de Laís — terá escopo maior: as duas vão adotar uma criança e Cecília, que é ativista, vai encarar criminosos ambientais. Já a previsão de um beijo dependerá do andar da carruagem. Seria um marco na volta por cima dessas mulheres apaixonadas.
Publicado em VEJA de 2 de maio de 2025, edição nº 2942