‘Ruído Branco’: de onde vem o estranho charme de Adam Driver
No filme, ele vive um intelectual sem aptidões diante de um repentino apocalipse
Pronto para tentar uma vaga no elenco da série Girls, Adam Driver teve uma certeza: ele nunca seria um protagonista. A conclusão precipitada veio da descrição no roteiro, que pedia por um “marceneiro bonitão” para ser o par romântico da atriz principal. Com rosto de traços peculiares, nariz proeminente e desengonçado 1,90 metro de altura, ele não se encaixava no estereótipo do galã americano. A aparência foi vista por ele como um fardo que limitaria a carreira de ator iniciada tardiamente, quando já beirava os 30 anos de idade. Driver, ainda bem, estava redondamente enganado.
Se o espelho agia como um inimigo, as câmeras revelaram-se grandes aliadas do ator e de seu charme, por assim dizer, exótico. Em 2012, ele despontou como o “marceneiro bonitão” em Girls e, no mesmo ano, deu início a uma prolífica parceria com o cineasta independente Noah Baumbach. Ruído Branco (White Noise; Estados Unidos; 2022), em cartaz nos cinemas e na Netflix a partir do dia 30 de dezembro, é o mais recente fruto dessa amizade — e, também, a prova definitiva de que Driver é capaz de conferir credibilidade até aos personagens mais extravagantes.
No caso, Jack Gladney, um professor universitário de olhar marcante e barriga saliente, que sabe absolutamente tudo sobre Adolf Hitler. Intelectual orgulhoso, Jack gosta de se gabar de seu amplo conhecimento sobre um pouco de tudo em longos discursos elaborados. A postura sabichona se estende ao restante da família, formada por quatro crianças espertíssimas e uma esposa adorável (vivida por Greta Gerwig, mulher de Baumbach na vida real). O grupo vive num subúrbio calmo, mas sem se desconectar das mudanças geopolíticas que rondam o mundo nos anos 80. O vasto conhecimento teórico se revela inútil quando um “miniapocalipse” bate à porta: uma nuvem tóxica e assustadora que parece ter vida própria, à la Stranger Things, se aproxima da região e todos têm de fugir da área sem uma ajuda apropriada do governo.
Se Jack sabe muito pouco sobre sobrevivência, Driver poderia lhe ensinar algumas lições. Antes de se dedicar à vocação artística, o ator recebeu treinamento militar: ele se alistou no Exército após os atentados terroristas às Torres Gêmeas, no 11 de Setembro de 2001. Filho de um pastor batista, criado no interior do estado americano de Indiana, Driver era o típico jovem sem perspectiva, pulando de bico em bico até se tornar um soldado. Um acidente de bicicleta, porém, o obrigou a aposentar a farda mais cedo — e o levou a uma missão nobre: em 2006, ele fundou o Arts in the Armed Forces, organização que promove ações culturais entre veteranos e familiares de militares.
Contra suas expectativas iniciais, Driver vem sendo disputado a tapa por grandes cineastas. Em míseros dez anos de carreira, trabalhou com Martin Scorsese, Steven Spielberg e Spike Lee. Foi, ainda, herdeiro do clã Skywalker na nova fase da saga Star Wars, na pele do vilão Kylo Ren. Mas é com o texto e a direção de Noah Baumbach que Driver aflora seu talento hipnótico sem amarras. Nos cinco filmes que já fizeram juntos, entre eles o impactante História de um Casamento (2019), ambos encontraram um trilho pelo qual conduzem o público em uma montanha-russa de emoções. O herói improvável nunca decepciona.
Publicado em VEJA de 21 de dezembro de 2022, edição nº 2820
*A Editora Abril tem uma parceria com a Amazon, em que recebe uma porcentagem das vendas feitas por meio de seus sites. Isso não altera, de forma alguma, a avaliação realizada pela VEJA sobre os produtos ou serviços em questão, os quais os preços e estoque referem-se ao momento da publicação deste conteúdo.