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‘Grande Sertão’: boas razões para fugir da adaptação de Guimarães Rosa

Filme tenta — mais uma vez, sem muito sucesso — transpor para o cinema a grandiosidade da trama que marcou a literatura

Por Raquel Carneiro Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 8 jun 2024, 08h00

“Viver é negócio muito perigoso”, afirma Riobaldo de forma repetida no romance Grande Sertão: Veredas, obra monumental de João Guimarães Rosa (1908-1967). Narrador e protagonista, o jagunço transita entre caminhos aparentemente opostos. Da fidelidade cambiante a Deus e ao Diabo, refletida em sua transformação de homem da lei em cangaceiro, até a paixão inesperada por um homem, Riobaldo enfrenta as mudanças de um mundo onde a instabilidade é a regra — isso, até descobrir que toda dualidade, no fundo, se mistura, seja na linha tênue entre o crime e a lei, seja nas definições do que é ou não é amor. “No viver tudo cabe”, diria ele.

Lançada em 1956, a obra é exemplar sagrado do Olimpo da literatura nacional, não só por sua escrita inventiva e incomparável, mas principalmente por sua visão afiada do Brasil e de sua principal mazela: o fantasma da violência que, do sertão aos centros urbanos, se manifesta sem freios. O paralelo é mote do filme Grande Sertão (Brasil, 2024), em cartaz nos cinemas. Dirigido pelo pernambucano Guel Arraes, o longa leva a história do cangaço da Bahia, do começo do século XX, para uma comunidade dos dias de hoje, em uma cidade fictícia parecida com o Rio de Janeiro. Jagunços viram bandidos e traficantes, enquanto os homens que se dizem da lei são policiais corruptos.

Riobaldo é vivido por Caio Blat — na juventude e, mais tarde, na velhice, com sobrecarga de maquiagem. Seu objeto de paixão, o misterioso Diadorim, fica a cargo de Luisa Arraes, esposa de Blat na vida real e filha do diretor. O filme não se furta a entregar de cara o grande spoiler do livro: Diadorim é uma mulher disfarçada de homem — e Luisa não engana ninguém como representante do sexo masculino. Rodrigo Lombardi, Luís Miranda e Eduardo Sterblitch completam o elenco principal que vai à guerra em uma disputa por poder na favela. O esforço do grupo é patente, mas em vão. Atuações caricatas e teatrais fazem do filme uma gritaria sem fim, enquanto a violência estilizada parece fruto de um desenho animado.

O resultado reforça a fama de “inadaptável” do livro. Até aqui, a melhor tentativa foi feita pela minissérie da Globo, de 1985, que tirou Grande Sertão do reduto intelectual para transformá-lo em trama popular, com Tony Ramos e Bruna Lombardi no elenco — outro Diadorim nada misterioso. Em breve, uma nova adaptação chegará aos cinemas: trata-se de Grande Sertão: Quebradas, do goiano Adirley Queirós, que ambientou a história na periferia de Brasília. O tempo dirá se, algum dia, uma adaptação fará jus à grandiosidade do original.

Publicado em VEJA de 7 de junho de 2024, edição nº 2896

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