Francis Ford Coppola a VEJA: ‘Trabalha bem quem faz o que ama’
Em Megalópolis, o diretor conduz a narrativa mais excêntrica e frenética de sua carreira — uma viagem sobre família, poder e uma cidade utópica
Era o começo dos anos 1960 e Francis Ford Coppola tentava trabalhar com cinema quando a oportunidade chegou via classificados. O produtor e guru do terror indie Roger Corman (1926-2024) procurava quem pudesse dublar dois filmes russos de ficção científica em inglês, sem necessidade de fluência na língua original. Coppola impressionou Corman e virou seu estagiário. Ali, como operário dos bastidores, ele já demonstrava características que o acompanhariam ao longo de sua brilhante carreira, como a criatividade anárquica e a devoção a toda forma de imagem em movimento, sem preconceito entre gêneros. A trajetória fez de Coppola, hoje com 85 anos, um dos nomes mais importantes do cinema mundial, maestro da trilogia O Poderoso Chefão (1972-1990) e gênio conhecido também pelos orçamentos e sets conturbados — atributos positivos e negativos que estão reunidos no novo filme dele, Megalópolis (Estados Unidos, 2024), em cartaz nos cinemas.
Na superprodução, o diretor imagina uma Nova Roma no lugar de Nova York. Anacrônico, mistura símbolos do antigo império ao furor do futurismo. A luta por civilidade nesse mundo tem de ser travada por gente como César Catilina (Adam Driver), que cria a substância Megalon, a qual deverá ser a base material de uma metrópole utópica e sem desigualdade. No caminho, ele enfrenta um prefeito reacionário e um primo rancoroso, em disputas de poder não muito distantes dos calvários shakespearianos. Ao longo de 2h18, Coppola entrega seu trabalho mais excêntrico e frenético, que mistura bacanais à música pop, urbanismo ao sobrenatural, comédia pastelão a assassinatos, e família à tecnologia. “Achei que, conforme eu ficasse mais velho, descobriria qual era o meu estilo, mas desisti de ser uma coisa só”, disse o diretor a VEJA (leia a entrevista abaixo).
A ideia de Megalópolis estava há décadas na mente do diretor, mas não foi para frente após o caos nas filmagens de Apocalypse Now (1979) e o fracasso do musical O Fundo do Coração (1981). Nos anos 2000, Coppola tentou retomá-la e até visitou Curitiba, no Paraná, como inspiração, mas interrompeu os planos após os ataques de 11 de Setembro. Para realizá-lo longe da supervisão de investidores, vendeu parte de uma vinícola em 2019, por 500 milhões de dólares, dos quais dedicou 120 milhões para a ideia. Tantas intempéries deram ao filme um tom autobiográfico. César é reflexo dos obstáculos corporativos e pessoais que limitaram o diretor, mas também justificativa para sua permanência. Ao invés de amargo, o cineasta se mostra esperançoso ao transpor para a tela a colaboração que manteve com múltiplos pupilos e com a esposa, Eleanor (1936-2024).
Coppola, afinal, dirigiu 25 longas e foi produtor executivo de 77, sem contar o apoio que prestou a familiares como a filha Sofia. Com George Lucas, fundou a American Zoetrope e distribuiu filmes de Godard, Kurosawa e Wenders. Ao longo da vida, se dedicou a toda forma de cinema, mais fiel aos artistas do que aos burocratas. Hoje, propõe ao futuro: se o ato de criação é infinito, por que limitar as ambições da arte e da vida? Segundo números de bilheteria, a proposta é ilusória: até então, o filme amarga pouco mais de 13 milhões de dólares pelo globo. Já para ele, o desempenho parece profecia realizada. Assim como o fictício César, Coppola sabe ser impossível ousar e agradar, mas sabe também que a primeira opção é mais duradoura e recompensadora.
“Trabalha bem quem faz o que ama”
Em São Paulo, Francis Ford Coppola falou com a editora Raquel Carneiro sobre sua trajetória e o filme Megalópolis.
O senhor fez de tudo um pouco no cinema, de drama de guerra ao terror e o musical. Por que esse interesse amplo? Eu era bem jovem quando comecei a fazer filmes. Achei que, conforme eu ficasse mais velho, descobriria qual era o meu estilo, mas desisti de ser uma coisa só. Nos anos 1970, eu anotava tudo em caderninhos, e foi quando pensei que gostaria de fazer um épico romano, mas nos Estados Unidos, assim nasceu a ideia para Megalópolis.
O senhor disse que Curitiba, no Brasil, foi uma das inspirações para o filme. Pode explicar melhor? Eu viajei por muitos lugares e vi diversas cidades que me pareceram construções do futuro, com transporte gratuito e prédios com controle climático através da arquitetura. Curitiba foi uma dessas cidades.
O que chamou sua atenção ali? O trabalho do prefeito Jaime Lerner (1937-2021), que se tornou governador do Paraná mais tarde. Ele desenvolveu um sistema rápido de transporte público que diminuiu o uso de carros em áreas da cidade, deixando o caminho mais livre para pessoas, além de outras iniciativas que faziam da cidade um lugar feliz, algo raro.
Como assim? Os humanos gastam muito dinheiro em publicidade para vender um pouco de felicidade para as pessoas, mas não se vende a alegria para gente feliz. Logo, o sistema funciona para que as pessoas sejam infelizes para poder, então, vender coisas a elas. Por isso é raro achar lugares felizes.
Há uma discussão na internet sobre o interesse contínuo dos homens no Império Romano. O que acha disso? Talvez porque no Império Romano mulheres eram quase escravas. Eram subjugadas, como todas as mulheres ao longo dos últimos 10 000 anos de patriarcado. Ao contrário do matriarcado, que já se provou ser um ambiente muito melhor e colaborativo.
Aos 85 anos, que conselho costuma dar aos jovens? O meu conselho é muito simples: faça o que você ama. Você é único, é um só. Não se preocupe em tentar garantir um sustento, porque dinheiro não é confiável. Trabalha bem quem faz o que ama, logo, o resultado é valioso.
Publicado em VEJA de 1º de novembro de 2024, edição nº 2917