‘Eu, Capitão’: a odisseia invisível (e real) dos refugiados africanos
No limiar entre sonho e pesadelo, o belíssimo filme acompanha a tortuosa trajetória de dois jovens rumo a uma nova vida na Europa
O cineasta italiano Matteo Garrone se surpreendeu quando ouviu um refugiado africano chamar a brutal viagem clandestina até a Europa de “aventura”. O termo de conotação positiva não parecia apropriado aos que fogem de guerras e da fome, num trajeto insalubre pelo Deserto do Saara e em embarcações abarrotadas no Mar Mediterrâneo — périplo que dura meses e no qual muitos perdem a vida. Ainda assim, o diretor aderiu ao ponto de vista dos viajantes — com resultado notável — ao realizar Eu, Capitão (Io Capitano, Itália, 2023), em cartaz nos cinemas e indicado ao Oscar de filme internacional. “O que eu fiz foi dar forma visual às histórias que me foram contadas como épicos, e não pela ótica europeia”, disse Garrone a VEJA.
Na trama, o adolescente senegalês Seydou, interpretado pelo jovem estreante Seydou Sarr, e o primo Moussa (Moustapha Fall) sonham em ser músicos. Em Dacar, eles são pobres, mas não miseráveis. Educados e amados, os garotos almejam a vida das estrelas que veem no TikTok e miram a Europa como destino para essa realização. Ao contrário dos que entram e saem do velho continente por vias legais, os dois não desfrutam o mesmo privilégio — o que os coloca nas mãos dos traficantes de pessoas. “O deslocamento humano por uma vida melhor é histórico e deveria ser um direito universal”, diz Garrone sobre a motivação por trás do filme.
Traçar os contornos de realidades difíceis é uma habilidade que o diretor provou ter em 2008, com Gomorra, a acachapante adaptação do livro de Roberto Saviano sobre a violenta máfia de Nápoles. De lá para cá, Garrone passou a adicionar pitadas de realismo mágico à crueza da vida real. Assim, Eu, Capitão se firma como uma pérola entre os muitos filmes recentes que observam a crise migratória europeia. A começar pela autenticidade do roteiro, escrito ao lado de refugiados e honrando as línguas originais de cada trecho: Seydou fala em cena o dialeto local wolof, além de francês, inglês e italiano.
Os dois jovens atores, que nunca haviam saído do Senegal, não receberam o roteiro completo, experimentando na prática a viagem sem saber o desfecho: os protagonistas enfrentam adversidades climáticas e também a crueldade humana dos que se aproveitam de vulneráveis. As cenas dignas de um pesadelo são amenizadas por toques de fantasia onírica — algumas envolvendo seres míticos africanos. Mas a coragem e o carisma dos dois garotos é o que cativa: apesar de o título do filme ganhar uma explicação didática ao fim, o desejo humano de ser capitão da própria vida sobressai — mesmo que, para isso, seja necessário encarar uma odisseia invisível.
Publicado em VEJA de 1º de março de 2024, edição nº 2882