Em ‘Babygirl’, Nicole Kidman explora os cantos obscuros do prazer feminino
O papel ousado confirma a atriz como uma estrela inquieta sem medo de correr riscos

Nicole Kidman, de 57 anos, já atuou em um punhado de filmes de alto teor erótico — mas nenhum deles como Babygirl (Estados Unidos/Holanda, 2024), que chega aos cinemas na quinta-feira 9. Na trama, ela interpreta Romy, CEO de uma importante empresa de tecnologia, casada e mãe de duas adolescentes, que coloca tudo em risco ao se envolver com um estagiário trinta anos mais novo, vivido por Harris Dickinson, 28. A relação é mais que um casinho. Revela o desejo velado da mulher de ser submissa ao parceiro: em uma cena, a loira poderosa se passa por um bicho de estimação, que anda de quatro e implora por carinho do rapaz dominador.
Babygirl é para poucos paladares, provocando emoções que vão da vergonha alheia à empolgação. Assim, filia-se a uma longa tradição de filmes que apostam em visões chocantes da sexualidade feminina. Como o clássico A Bela da Tarde (1967), do surrealista Luis Buñuel, estrelado por Catherine Deneuve na pele de uma dona de casa que se torna prostituta por prazer — especialmente quando há violência envolvida. Ou A Professora de Piano (2001), do austríaco Michael Haneke, no qual Isabelle Huppert é uma musicista reprimida com desejos autodestrutivos. O filme com Nicole traz um elemento extra: ao contrário dos longas citados, feitos sob o olhar masculino, o roteiro e a direção de Babygirl são assinados por uma mulher, a cineasta holandesa Halina Reijn. Nas mãos dela, a relação de tom sadomasoquista tem mais a ver com a alforria do prazer feminino que com a dor e a violência: Romy é livre e empoderada o suficiente para fazer o que quiser — até mesmo ser subserviente a um novinho. Essa investigação move a obra da diretora de 49 anos, que fez em seu país de origem os filmes De Leerling (“O estudante”, em português), de 2015, e Instinto, de 2019, todos centrados em mulheres que se envolvem com homens em posição social inferior, mas postura sexual dominante.

Para Nicole Kidman, o tema era novo e atraente — características que pautam, para o bem e para o mal, as escolhas da atriz australiana. Dessa vez, a incursão ousada deu certo: ela conquistou o prêmio de melhor atriz no Festival de Veneza, foi indicada ao Globo de Ouro e pode somar uma sexta indicação ao Oscar. Com uma carreira longa e vasta — ela atua desde os 13 anos de idade —, Nicole nunca foi da turma recatada. No notório De Olhos Bem Fechados, de 1999, último filme de Stanley Kubrick (que morreu naquele ano), ela aparecia nua e falando abertamente sobre fantasias sexuais com o então marido, Tom Cruise, de quem se divorciou dois anos depois — desde 2006, é casada com o cantor country Keith Urban. Em Obsessão (2012), do diretor Lee Daniels, abraçou a vulgaridade ao viver uma mulher rampeira em cenas quentes com Zac Efron. Já na série Big Little Lies, transitou por uma seara delicada ao interpretar uma esposa de vida sexual prazerosa com o marido, mas que sofre violência doméstica.
Mais que versátil, Nicole demonstra gosto pelo risco — algo em comum com a protagonista de Babygirl. “Não fico na zona de conforto”, já afirmou a atriz. Ela também reconhece que nem sempre seu faro é o mais certeiro. Mas, a partir do momento em que embarca na viagem, se entrega até o fim. Isso explica como, no mesmo ano, apareceu em trabalhos tão discrepantes. Em 2024, além do filme de Halina, estrelou a comédia mediana Tudo em Família, e participou de três séries: o belíssimo drama Expatriadas, do Prime Video; a intrigante Operação Lioness, do Paramount+; e a vexatória O Casal Perfeito, da Netflix.

Dona de si e da própria produtora, a Blossom Films, Nicole não vive em prol das expectativas alheias. Nos últimos anos, colocou-se em um lugar que ainda assusta suas contemporâneas: o da mulher vaidosa, que assume seus procedimentos estéticos, ao mesmo tempo que não deixa a aparência sobressair a seu talento. Em Babygirl, por exemplo, um dos primeiros flertes entre ela e o personagem de Dickinson se dá logo após uma aplicação de toxina botulínica, mais conhecida pela marca Botox — procedimento comum, mas que muitas mulheres (e homens) fingem não fazer. Uma das agulhadas deixa um roxo perto do olho da CEO — detalhe que o fogoso estagiário aponta que “combinou com ela”. A mulher se choca na mesma medida em que se excita — emoções que Nicole transparece sem dizer uma palavra nem mover a sobrancelha. Feito raro que demanda talento — e olhos bem abertos para ver além dos riscos.
Publicado em VEJA de 3 de janeiro de 2025, edição nº 2925