Ditadura militar: os novos filmes que exorcizam um fantasma da nação
Eles retratam dramas reais vividos no período — temática prolífica do cinema nacional que ganha releitura em tempos de polarização política e desinformação
O soldado Armando e a dona de casa Maria em nada se parecem, exceto por partilharem da mesma fé: ambos são católicos fervorosos. Outro ponto capcioso os conecta. A filha de Maria, a estudante Vera, está desaparecida — e Armando faz parte do Departamento de Operações de Informações, o DOI-Codi, do Rio de Janeiro, onde Vera está presa e sendo torturada. O ano é 1969, período de chumbo da ditadura militar brasileira. Tomado pela culpa — afinal, seria ele um bom cristão entre torturadores? —, Armando cuida da prisioneira escondido dos colegas de farda e se arrisca a levar notícias dela para a mãe preocupada. Com Shi Menegat na pele do soldado e Georgette Fadel e Valentina Herszage interpretando mãe e filha, o filme O Mensageiro (Brasil, 2023), que estreia nos cinemas na quinta-feira 15, bebe de uma história real peculiar. Por dois meses, a diretora Lúcia Murat foi presa e torturada pelos militares — os quais negavam para a família que ela estivesse no batalhão. Um soldado da guarda lhe ofereceu ajuda, servindo de ponte entre ela e os pais. “Foi um ato de generosidade em meio ao horror”, disse a cineasta de 75 anos a VEJA. Contra as expectativas, o militar e a mãe de Lúcia desenvolveram um laço. “Ela foi até madrinha do casamento dele”, revela a diretora — que, na ocasião, havia sido oficialmente presa, ficando encarcerada até 1974.
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O exercício de Lúcia para humanizar seu algoz reforça o penoso processo de cura da cineasta, que voltou a sentir as dores do trauma quando parte dos apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro pediu o retorno da ditadura. “A desinformação sobre o período cresceu de forma alarmante”, diz a cineasta carioca. Mais que um retrato do passado, O Mensageiro se revela, então, uma inevitável resposta ao presente — missão que ele não assume só. Uma nova e robusta leva de filmes ganha realce nos cinemas neste mês de agosto, todos com um prisma particular sobre o regime. Em Entrelinhas, longa do diretor paranaense Guto Pasko que entra em cartaz no dia 22, uma jovem é presa e torturada injustamente em Curitiba, enquanto seus pais lutam para reavê-la. No dia 29 estreia Zé, do cineasta mineiro Rafael Conde, que acompanha o período que o militante José Carlos Novais da Mata Machado (1946-1973) passou com a esposa e duas crianças na clandestinidade — até ser traído por um parente. Enquanto isso, no tradicional Festival de Veneza, que começa no dia 28, Walter Salles apresenta Ainda Estou Aqui, com Fernanda Montenegro, Fernanda Torres e Selton Mello.
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Uma das forças dos novos filmes é resgatar histórias reais e emblemáticas da ditadura. O longa de Salles, por exemplo, é a adaptação do livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva e narra o drama verídico da mãe do autor, que encarou a vida com cinco filhos após seu marido, o deputado Rubens Paiva (1929-1971), ser assassinado pelos militares. A depender de como for recebido em Veneza, uma relevante vitrine para o Oscar, Ainda Estou Aqui pode se tornar um concorrente brasileiro na premiação. O assunto, aliás, já chamou a atenção da Academia de Hollywood: O que É Isso, Companheiro?, de Bruno Barreto, disputou a estatueta nos anos 1990.
Ainda estou aqui – Marcelo Rubens Paiva
Para além da causa coletiva, tema usual em obras sobre o período, nesta nova safra saltam ao primeiro plano famílias e pessoas comuns envolvidas na guerra ideológica da época. O recorte ilumina aspectos pouco explorados da opressão ao colocar em cena indivíduos imersos num exame moral complexo — que convida quem assiste ao filme a fazer o mesmo. Ao recontar a vida do ativista interpretado por Caio Horowicz, Zé busca reproduzir seu terror psicológico: a família vive escondida e troca de nomes, sempre cercada pelo medo de ser capturada. “O que não se mostra assusta mais que aquilo que é explícito”, analisa Conde. O mesmo acontece em Entrelinhas, que utiliza um recurso parecido com o do ótimo longa britânico Zona de Interesse: a protagonista, Ana Beatriz Fortes (Gabriela Freire), não vê a tortura, mas escuta da cela os gritos dos demais presos. O diretor vai além e, para não expor o corpo feminino, transpôs para um homem a única cena em que há um interrogatório violento: na vida real, foi Ana Beatriz quem sofreu a tortura. “Meu filme é imparcial, todo baseado em documentos que mostram os absurdos da arbitrariedade daquele período. Ao fim de dez dias de tortura, Ana foi devolvida para a família com a seguinte frase: ‘Desculpem, foi engano’”, conta Pasko.
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Em O Mensageiro, o sofrimento da estudante Vera é relatado nas palavras dela em um julgamento — assim como a própria Lúcia fez à Comissão da Verdade, em 2013. Questionada se perdoou seus torturadores, a cineasta é direta: “Eu perdoaria, contanto que fosse em um tribunal”. O fantasma da ditadura ainda assombra a nação — e falar sobre os horrores do passado é o melhor jeito de exorcizá-lo.
Publicado em VEJA de 9 de agosto de 2024, edição nº 2905