‘Crimes of the Future’: uma distopia biológica para quem tem estômago
O diretor David Cronenberg choca ao imaginar uma era em que humanos usam a tecnologia para mudar seus corpos
Na sala poeirenta da divisão de Registro de Novos Órgãos, Saul Tenser (Viggo Mortensen) é devorado com os olhos pela burocrata Timlin (Kristen Stewart). Ela o cerca num canto, tomada por desejo; ele se esquiva. Timlin faz o homem abrir a boca e o examina por dentro. Ele parece gostar, mas recua diante de um beijo: “Desculpe, eu não sou bom no antigo sexo”. Se chegar firme a essa altura do desafiador Crimes of the Future (Canadá/Inglaterra/Grécia, 2021), o espectador já estará ciente do que realmente move a libido dos personagens da nova distopia biotecnológica do diretor David Cronenberg: a visão de vísceras e tecidos modificados através da genética e, graças a avanços da medicina, capazes de despertar prazer ao ser expostos e tocados — tanto para quem vê como para quem, como o artista performático Tenser, se oferece de cobaia. “A cirurgia é o novo sexo”, diz ele, resumindo essas mórbidas relações humanas.
E bota mórbidas nisso: durante sua exibição no último Festival de Cannes, o filme de Cronenberg — que acaba de chegar aos cinemas do país e estreia na plataforma Mubi no dia 29 — levou muitos a deixar a sessão chocados. Aos 79 anos e havia oito sem dirigir um longa, o cineasta canadense está de volta à sua zona de conforto: a provocação assentada na esquisitice presente em filmes como A Mosca (1986) e Crash — Estranhos Prazeres (1996).
É com Crash, que falava de pessoas com o perturbador fetiche sexual por acidentes de carro, que Crimes of the Future mais se aparenta. Numa era hipotética, os humanos vivem uma transição física vertiginosa. Já não se sente dor, o sono e a alimentação são otimizados por camas e cadeiras com aspecto orgânico, e as pessoas rumam a uma fusão de seus organismos com elementos sintéticos. A prática assusta e é coibida, pois não se sabe ao certo seu efeito sobre a evolução da espécie. Mas, no submundo, cientistas e artistas radicalizam essas experiências.
Em suas performances, Tenser se deixa ser dissecado ao vivo, enquanto a parceira Caprice (Léa Seydoux) controla com um joystick os bisturis que vão abrindo seu abdome e de lá extraindo surpresinhas que causam excitação: órgãos desconhecidos que seu metabolismo produziu e viram “obras de arte”. Crimes of the Future não deixa de ser um suspense — e decerto frustra quem espera um final apoteótico. Mas é, sobretudo, uma potente versão do mito grego de Prometeu: ao brincar de Deus, criando, por exemplo, crianças capazes de deglutir plástico, não estaria o homem dando um passo maior que as pernas? O espectador pode tirar sua conclusão — se tiver estômago.
Publicado em VEJA de 20 de julho de 2022, edição nº 2798
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