Coringa: Delírio a Dois: os altos e baixos da sequência do sucesso
Diretor do filme, Todd Phillips fala a VEJA: 'Sequências são mais difíceis'
De terno bordô e maquiagem de palhaço, o Coringa briga com a própria sombra em um desenho animado. Eles se batem até que a sombra se descola do palhaço: ela o prende no armário, passa tinta no rosto, rouba suas roupas e sai por aí causando altas confusões. Quando o Coringa de carne e osso consegue se libertar e pegar seu figurino de volta, já é tarde: ele tem de pagar pelos erros cometidos por sua versão impostora — enquanto é duramente espancado pelos policiais. A animação nada recomendada para crianças abre o filme Coringa: Delírio a Dois (Joker: Folie à Deux, Estados Unidos, 2024), já em cartaz nos cinemas. O desenho antecipa a ideia geral do longa: seria Arthur Fleck, o homem por baixo da maquiagem de palhaço, uma identidade à parte do vilanesco Coringa? Se assim for, que tipo de pena deve ser aplicada a um indivíduo com duas personalidades e que matou seis pessoas — uma delas em rede nacional, ao vivo?
A questão conduz o julgamento do personagem vivido por Joaquin Phoenix na sequência de Coringa, o excelente filme de 2019 que lhe deu o Oscar de melhor ator. No tribunal que relembra os crimes cometidos por ele no longa anterior, a defesa argumenta que Arthur sofre de um transtorno dissociativo de identidade, que o levou a criar o Coringa e um mundo fantasioso a fim de escapar da realidade de abusos de sua infância. O mergulho nos dilemas mentais associados ao meio onde um indivíduo se desenvolve foi o toque de gênio que deu uma cara própria ao primeiro filme, fazendo dele mais que um spin-off do universo do herói Batman.
Os números não mentem: para além do 1 bilhão de dólares em bilheteria, o longa foi indicado em onze categorias do Oscar e saiu com o Leão de Ouro do Festival de Veneza. Como se sabe em Hollywood, o sucesso leva a sequências — uma equação de resultados variados, como atesta Delírio a Dois: o novo filme é um deleite para os olhos e um palco para o talento de Phoenix, mas é também um produto que se rebela contra seu material original, assim como a luta inglória entre o Coringa e sua sombra sem carisma na animação inicial. O desafio vem, justamente, da ousadia em adicionar números musicais como uma fuga da mente perturbada do protagonista.
No primeiro filme, Coringa se imaginava amado em um bar de stand-up e num programa de TV; aqui, ele se vê como um astro da música, igualmente querido e, dessa vez, acompanhado. Arthur conhece Lee Quinzel, vivida por Lady Gaga, em uma aula de canto terapêutico na ala psiquiátrica da prisão. Lee é uma versão da popular Arlequina dos quadrinhos, mas pelo prisma da cantora e do diretor Todd Phillips. “Gaga trouxe vulnerabilidade e graça para o papel”, disse o cineasta a VEJA (leia a entrevista abaixo). Ela também representa a figura da mulher que se apaixona por criminosos, a exemplo do séquito de fãs acumulado pelo líder de seita e assassino serial Charles Manson. Lee e Coringa se embrenham numa fantasia musical, com números dançantes e românticos, embalados por canções originais e outras clássicas, como a cover de That’s Entertainment, do clássico A Roda da Fortuna (1953).
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A loira é a principal defensora do vilão, mas com uma tese na contramão da advogada: para ela e vários outros fãs, o Coringa é real e não fruto de um delírio paranoico. Ele também seria uma forma de vingador incompreendido que deve ser solto e absolvido — sugestão que comprova quão fora da caixa ela é. Para o Coringa, só existem duas saídas legais: uma delas é o hospital psiquiátrico; a outra, a cadeira elétrica. No universo dos super-heróis e de seus arqui-inimigos, porém, tudo é possível. Até mesmo o amor ardente entre dois desajustados.
“Sequências são mais difíceis”
O diretor Todd Phillips, 53 anos, falou a VEJA sobre a sequência de Coringa.
O primeiro filme foi um sucesso estrondoso. Sentiu pressão para fazer o segundo? Sequências são sempre mais difíceis, pois existe uma expectativa que não havia para o primeiro. As pessoas vão amar como amaram o anterior? Não sei — e essa é também parte da graça de fazer uma continuação.
Por que adicionou números musicais à trama? Arthur é um homem solitário, que não se encaixa, mas que possui um lado artístico e musical. Isso já estava no primeiro filme. Então, ao adicionar amor na vida dele, a música se revelou um caminho óbvio da narrativa.
Como foi a escolha de Lady Gaga para ser o par romântico de Phoenix? Gaga trouxe vulnerabilidade e graça para o papel, além da música. Os dois possuem uma eletricidade patente.
Qual o desafio de criar um casal tão perturbador? Eu não diria perturbador. Ela vê beleza no Coringa e ele, nela. Não é um casal tradicional, mas a conexão entre eles é autêntica.
Gostaria de dirigir um filme do Batman no futuro? Gosto muito de vilões e me diverti com o Coringa, mas não quero fazer outros filmes desse universo. Queria explorar esse mundo com o Joaquin, e foi o que fizemos.
Publicado em VEJA de 4 de outubro de 2024, edição nº 2913