Como Woody Allen contornou o cancelamento – e continuou relevante
Diretor chega a seu 50º filme exibindo a coerência e o olhar afiado de sempre aos 88 anos
No famoso monólogo que abre o filme Noivo Neurótico, Noiva Nervosa, de 1977, o diretor, roteirista e estrela da produção — ele mesmo, Woody Allen — conta uma anedota. “Duas mulheres mais velhas estão em um resort. Uma delas diz: ‘A comida desse lugar é horrível’. A outra responde: ‘Sim, e as porções são muito pequenas’. Bem, é assim que eu me sinto em relação à vida”, explica ele, mirando a câmera. “A vida é feita de solidão, miséria, sofrimento, infelicidades e, ainda assim, é muito curta.” Na época, Allen tinha pouco mais de 40 anos. Hoje, aos 88, seu modo de encarar a existência — como uma refeição ruim, mas que ironicamente acaba rápido demais — não mudou. “Eu ainda tenho tantas histórias dentro de mim para contar. Mas não vai dar tempo. Talvez eu faça mais dois filmes, quem sabe”, disse ele via videoconferência a VEJA, com seu modo de falar ininterrupto e, ao mesmo tempo, introspectivo — como se falasse consigo mesmo mais que com o interlocutor. A ânsia por criar de forma constante se comprova com o lançamento de seu 50º filme, Golpe de Sorte em Paris (Coup de Chance; França, Reino Unido e Estados Unidos; 2023), que chega aos cinemas na quinta-feira 19.
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O filme rodado na França é o primeiro de Allen em língua não inglesa — no caso, com o elenco falando em francês. A escolha vai além de um desejo estético. Desde 2018, o diretor americano não faz um filme em Nova York, sua cidade natal e principal cenário de sua obra. Naquele ano, Allen viu voltar à tona as acusações feitas por sua ex-companheira Mia Farrow em 1992, de que ele teria abusado da filha adotiva de ambos, Dylan, então com 7 anos de idade. Duas investigações deveras públicas inocentaram o cineasta na época — o que não o impediu de cair sem paraquedas no limbo dos cancelados quase três décadas depois. Allen, então, perdeu investidores e teve um contrato de quatro filmes com a Amazon cancelado — rixa que se estendeu em uma ação do diretor contra a empresa avaliada em 68 milhões de dólares. Em um exemplo primoroso de hipocrisia, atores que trabalharam com ele no passado — e que já sabiam das notórias acusações havia tempo — pediram desculpas publicamente e chegaram a doar os cachês conquistados com os filmes de Allen para instituições de caridade.
Encurralado, o cineasta foi do Olimpo de Hollywood ao fundo do poço e se viu diante de duas possibilidades: uma porta levava à aposentadoria e à reclusão; outra, a um novo jeito de continuar trabalhando, com dificuldades de levantar financiamento e de encontrar atores dispostos a estampar um cartaz com o nome do diretor no topo. Contra as expectativas, Allen seguiu o segundo caminho. Para isso, encontrou refúgio definitivo na mesma Europa com a qual já andava flertando em seus filmes. Em 2020, lançou O Festival do Amor, rodado na Espanha, e agora, Golpe de Sorte em Paris — filmado na segunda cidade favorita do diretor, após Nova York. “Eu passaria seis meses em cada uma. Mas minha esposa gosta mais de Nova York”, diz ele, citando Soon-Yi Previn, com quem está junto há 27 anos e tem duas filhas. A união do casal é relevante nas acusações que pairam sobre ele: Soon-Yi era a filha adotiva mais velha de Mia Farrow de um relacionamento anterior — a atriz teve catorze filhos, dez adotados. Mia acusou Allen após descobrir a traição. Um imbróglio que, desde então, se mantém na teia do sensacionalismo.
Apesar de ser fruto de uma fase espinhosa da carreira do cineasta (leia o quadro abaixo), Golpe de Sorte carrega os elementos narrativos que fizeram de Allen um nome essencial do cinema. Na trama, Fanny (Lou de Laâge) parece ter a vida dos sonhos. Ela mora em um belíssimo apartamento em Paris, trabalha no mercado de leilões de arte e é casada com um empresário bonitão e bem-sucedido, interpretado pelo ótimo Melvil Poupaud. Certo dia, andando pela rua, ela tromba com Alain (Niels Schneider), um ex-colega de escola que sempre fora apaixonado por Fanny. Entre longos diálogos e caminhadas pelo cenário exuberante da cidade, os amigos do passado desenvolvem um laço afetivo que irrita o marido da moça — e dá início a uma série de eventos clássicos do universo de Allen. Amor, ciúme, traição, sujeira sendo tirada de debaixo do tapete e tramoias ilegais são embalados por um roteiro irônico e niilista e uma trilha sonora alegre, além de reviravoltas que nem o mais versado fã do diretor conseguiria prever. O criador incansável continua inspirado.
Homem de fases
A evolução do cinema de Woody Allen em cinco décadas
O engraçadão
Allen começou como comediante de stand-up e roteirista de programas de humor. A veia cômica conduziu seus primeiros filmes, como o nonsense Tudo o que Você Sempre Quis Saber sobre Sexo, Mas Tinha Medo de Perguntar, de 1972
O cineasta “denso”
O prestígio chegou quando ele assumiu a faceta dramática, com pitadas de humor ácido nas entrelinhas. Daí nasceu o notável Noivo Neurótico, Noiva Nervosa, de 1977, um de seus filmes mais premiados e aclamados
O queridinho de Hollywood
Entre os anos 1990 e começo dos 2000, Allen estava em alta. Ele, então, arrebanhou celebridades e experimentou tramas variadas, de romances a dramas policiais, como o intrigante Match Point, com Scarlett Johansson, de 2005
O “guia turístico”
Allen sai de Nova York, seu cenário favorito, para filmar em grandes cidades da Europa, de Londres a Barcelona. Seu filme de maior bilheteria é dessa fase, o adorável Meia-Noite em Paris, de 2011, com Owen Wilson e Rachel McAdams
O cancelado
Com o movimento #MeToo, acusações antigas contra o diretor foram recuperadas. Um Dia de Chuva em Nova York, de 2019, seu último filme nos Estados Unidos, foi um fiasco. Allen, então, vai à Europa para continuar trabalhando
Publicado em VEJA de 13 de setembro de 2024, edição nº 2910