Como o filme ‘Divertida Mente 2’ encarou a ansiedade – e saiu vitorioso
Pixar volta a explorar de forma esperta e sensível os meandros da mente — viagem que fica ainda mais fascinante com a chegada da protagonista à adolescência
Do alto da sala de controle que fica dentro da mente de Riley, uma garota de 13 anos, as emoções Alegria, Tristeza, Raiva, Medo e Nojinho observam a evolução das chamadas “ilhas” — centros coloridos e em constante movimento que reúnem o que há de mais importante na vida da menina. Uma das ilhas é voltada só para o hóquei, esporte que ela pratica. Outra, a maior delas, é a da amizade. Ali perto, um tanto menorzinha, está o canto da família. A calmaria chega ao fim quando, de um dia para outro, o alarme da puberdade dispara, trazendo para o local novas emoções prontas para bagunçar a cabeça da jovem. A animação Divertida Mente 2 (Inside Out 2, Estados Unidos, 2024), já em cartaz nos cinemas, parte do desfecho do longa anterior, de 2015, no qual Riley, então aos 11, entra na pré-adolescência — período curto e de rápidas mudanças que culminam agora no caos da fase que a tira de vez da infância. Chegam de mala e cuia à sala de controle o grandão rosado Vergonha, a observadora Inveja, o encostado Tédio e a alaranjada Ansiedade — o qual se impõe como protagonista da trama, em um reflexo incômodo da vida real.
Riley não está sozinha: estima-se que 300 milhões de pessoas no mundo sofram de ansiedade — e, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil é o triste líder desse ranking. Também padece do mesmo mal o americano Kelsey Mann, diretor do filme. “Aprendi que a melhor maneira de lidar com qualquer problema é falando sobre ele”, disse Mann em entrevista a VEJA. “Assim como o primeiro filme deu ferramentas para os adultos conversarem com as crianças sobre a tristeza, espero que desta vez as famílias possam falar abertamente sobre a ansiedade.”
Ousados e originais, os dois filmes são exemplos notáveis do poder criativo da Pixar, o estúdio fundado por Steve Jobs e hoje pertencente à Disney que, nos melhores momentos, é hábil em traduzir temas espinhosos do mundo adulto para as crianças. A usina americana de animações não nega a fonte de onde extraiu tal marca: o trabalho dos japoneses do Studio Ghibli, que embalam seus desenhos de traços delicados em roteiros profundos. Luto, medo, ansiedade, frustração e transtornos mentais são assuntos que ambos já exploraram com competência, reforçando um histórico relevante no gênero. Ao longo de sua história, as animações têm sido capazes de transformar agruras da vida em seres coloridos, trazendo conforto, identificação e pitacos sobre superação e amadurecimento (leia abaixo).
Museu Pixar: Histórias e arte do estúdio de animação
De mãos dadas com a ciência, Divertida Mente 2 contou com consultores renomados. São eles o psicólogo e professor universitário americano Dacher Keltner, que estuda as emoções e seus efeitos no convívio social e nos julgamentos morais; e a também psicóloga Lisa Damour, especializada nas mudanças mentais de meninas. A dupla foi essencial na seleção das novas emoções da trama — que costumam surgir quando o indivíduo passa a dar mais valor a seu entorno social e ao modo como ele é visto pelos outros. “O cérebro fica mais sofisticado ao sair da infância, desenvolvendo a autoconsciência e a capacidade de enxergar diferentes perspectivas sobre um assunto”, diz Damour, que explora o tema no livro The Emotional Lives of Teenagers (As Vidas Emocionais dos Adolescentes), de 2023, ainda sem edição no Brasil. O processo de fazer Divertida Mente, aliás, é hercúleo. “Temos cerca de 500 pessoas envolvidas no desenvolvimento, que durou quatro anos”, conta o produtor Mark Nielsen. Ao longo desse período, os rascunhos e o roteiro foram feitos e refeitos diversas vezes, e apresentados aos demais funcionários da Pixar antes de chegar ao público-alvo, com exibições experimentais para famílias — e, claro, garotas de 13 anos.
The Emotional Lives of Teenagers – Lisa Damour
Se o primeiro filme surpreendeu pela criatividade ao explorar a mente humana, o novo se aprofunda em detalhes subjetivos, como o desenvolvimento das convicções e do senso de si. Riley está crescendo e, assim, descobrindo quem é, quais são suas prioridades e qual futuro ela gostaria de ter. É nesse último substrato que a Ansiedade deita e rola. Ao se apresentar para as novas emoções, o ser laranjinha abre um laptop para mostrar todos os possíveis cenários tenebrosos que podem acontecer se Riley for ruim no hóquei ou não fizer amigos no ensino médio — sempre com desfechos horríveis e irreparáveis. A Ansiedade domina a mente da jovem, jogando as demais emoções para longe da sala de controle. Enquanto elas tentam voltar ao seus devidos lugares, a trupe liderada pela Alegria passa por novas construções mentais: do abismo do sarcasmo aos segredos ocultos, até o centro da imaginação — antes uma oficina de pensamentos joviais e criativos, este agora se vê sob domínio da Ansiedade. Mas como vencê-la? Eis a pergunta que vale uma vida — e que Divertida Mente consegue, a seu modo, resolver. Haja emoção!
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Publicado em VEJA de 21 de junho de 2024, edição nº 2898