Como ‘Frankenstein’ continua vivíssimo mais de 200 anos após o livro
A obra de Mary Shelley ganha uma nova e ambiciosa releitura
Mary Shelley (1797-1851) precisava criar uma história de fantasma. O desafio foi dado pelo poeta inglês Lord Byron (1788-1824) aos colegas com quem passava dias de descanso em um vilarejo na Suíça. Tomada pela insônia, Mary devaneou sobre o galvanismo, ciência essencial para o estudo de correntes elétricas, e imaginou uma ressurreição humana desastrosa. O fruto desse experimento científico seria uma colcha de retalhos de carne monstruosa, capaz de falar, pensar e se locomover. “Tenebroso seria o efeito de qualquer humano cuja vontade é caçoar do estupendo mecanismo do Criador do mundo”, escreveu sobre as consequências destinadas àqueles que ousam ser Deus. Mais tarde, a autora britânica transformou sua história de terror fortuita no romance Frankenstein ou o Prometeu Moderno, publicado originalmente em 1818. Mais de 200 anos depois, a trama do monstro ressuscitado em um laboratório segue atiçando o imaginário popular: o livro ainda vende uma média de 40 000 cópias por ano e virou base para centenas de adaptações cinematográficas. Entre elas o ambicioso filme Frankenstein (Estados Unidos e México, 2025), superprodução da Netflix em cartaz em cinemas selecionados — e que chega no dia 7 de novembro à plataforma de streaming.
Com um orçamento de 120 milhões de dólares, o longa é dirigido pelo mais gótico dos cineastas contemporâneos, o mexicano Guillermo del Toro, que passou vinte anos estudando como seria o roteiro ideal de uma adaptação que levasse sua assinatura. Encontrou inspiração na paternidade, usando sua história familiar para trazer ao antigo mito uma nova paleta de interpretação, de viés psicológico, o do conflito da expectativa de controle do pai, o criador, sobre sua prole. “O filme é um mea-culpa por repetir com minhas filhas os mesmos erros da criação que me foi dada”, disse ele a VEJA (leia a entrevista na pág. 82). Ao adicionar um ponto de vista particular e íntimo, o cineasta prova a atemporalidade da obra clássica: tão persistente quanto sua criatura, a parábola inesgotável captura a ambição desenfreada dos homens e as dificuldades de encarar as consequências de ações precipitadas, e pincela a ideia de que ninguém nasce monstruoso — mas pode se tornar assim, dependendo de como for tratado. No original, o cientista Victor Frankenstein, obcecado pela ideia de derrotar a morte desde que perdeu a mãe, se debruça sobre o projeto antiético de reanimar um corpo falecido por meio da eletricidade. Assim nasce a criatura jamais nomeada, para a qual o cientista se mostra despreparado. Ele age com crueldade e abandona seu “monstro”, que, por sua vez, retribui com animosidade as ações do mundo impiedoso que encontra fora do laboratório. À época de Mary, os acontecimentos espelhavam efeitos das guerras napoleônicas, a violência contra párias e questionamentos sobre o avanço das ciências, assim como os valores sociais da própria autora, filha de pai anarquista e mãe feminista.
Rebatendo o tom pessimista da autora, Del Toro temperou o roteiro de seu filme com uma fé inabalável e até pueril na humanidade. Vivido pelo galã requisitado de Hollywood Jacob Elordi, a criatura oprimida pelo criador, papel de Oscar Isaac, equilibra estranheza e sensibilidade — com a esperança de que, talvez, haja lugar para alguém como ele no mundo.
O viés dos desajustados é comum em adaptações de Frankenstein. Em sua primeira versão para o cinema, em 1931, o cineasta James Whale, que era gay, usou o personagem como metáfora para a exclusão social de pessoas LGBTQIA+. Dali surgiu o monstro truculento eternizado por Boris Karloff. Muitos atores, aliás, já assumiram o papel, de Christopher Lee, passando por Robert De Niro, a Rory Kinnear na série Penny Dreadful (2014-2016). Mais recentemente foi a vez de Emma Stone em Pobres Criaturas (2023), filme que transpõe a ideia da ressurreição para um corpo feminino adulto e explora a resposta da sociedade vitoriana a uma mulher livre. Já a série Alien: Earth, no Disney+, desvia dos alienígenas da saga de Ridley Scott e foca nos androides, os quais recebem a consciência de crianças terminais que, assim, driblam a morte, mas se tornam objetos de seu inventor. Enquanto houver ganância e preconceito no mundo, as palavras de Mary Shelley continuarão atuais e dignas de interpretações. Frankenstein está mais vivo do que nunca.
“Me identifico com o monstro”
O cineasta Guillermo del Toro revela a VEJA como teceu ao longo de anos sua própria versão de Frankenstein.
O que o atrai na história de Frankenstein a ponto de querer adaptá-la? Desde que eu era criança me identifico com o monstro pelo modo como me encaixava (ou não) no mundo. Eu não cumpria os requisitos comuns a um garoto mexicano nos anos 1960.
Pode dar exemplos? Meu pai me levava para caçar, mas eu nunca pegava na arma, assim como nunca quis jogar futebol no sol. Por isso meu intuito inicial era adaptar o livro como se fosse a minha história pessoal, mas tudo mudou depois que eu me tornei pai.
Por que a paternidade alterou seus planos? Porque notamos que não é fácil. Quis então fazer um mea-culpa por repetir com minhas filhas os mesmos erros da criação que me foi dada. A culpa sempre dá frutos. Há muito do que se arrepender. O projeto foi evoluindo junto comigo e ganhando novas camadas.
Oscar Isaac tem uma atuação enérgica, em contraponto ao jeito calmo de Jacob Elordi. Como alcançou esse resultado? Gosto de dar atenção especial à fisicalidade dos atores. Quando trabalhei com Bradley Cooper em O Beco do Pesadelo, eu o fiz se inscrever em aulas de boxe, porque o personagem entraria em uma briga de socos. No caso de Oscar, convenci-o a treinar, porque ele teria que correr muito no set. Quanto ao Jacob, recorremos à dança japonesa chamada butô, que lhe deu uma certa liberdade.
Publicado em VEJA de 24 de outubro de 2025, edição nº 2967
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