A Sociedade da Neve vai além do canibalismo ao retratar tragédia nos Andes
O diretor J.A. Bayona extrai do caso lições de esperança sobre o ser humano
No dia 13 de outubro de 1972, o time de rúgbi uruguaio Old Christians partiu de Montevidéu rumo a Santiago, no Chile, para uma partida amistosa. Mas não chegou lá: seu avião caiu na Cordilheira dos Andes. O acidente ficou conhecido por dois epítetos opostos: há quem o chame de Tragédia dos Andes — e os que preferem vê-lo como Milagre dos Andes. Ambos, a seu modo, estão corretos. Das 45 pessoas a bordo, 29 sobreviveram à queda. No local inóspito, com temperaturas que chegavam a 30 graus negativos, sem comida e sob os efeitos devastadores da altitude de 4 000 metros, o grupo sofreu outras perdas enquanto esperava por socorro — ou um milagre. O resgate não localizou os passageiros, e eles foram declarados mortos. Após 72 dias, o choque: dezesseis sobreviventes foram encontrados. Desde então, não faltou quem tentasse desvendar como eles desafiaram o impossível. Tarefa que o diretor J.A. Bayona cumpre com surpreendente elegância e magnetismo no filme A Sociedade da Neve (La Sociedad de la Nieve; Espanha/Uruguai/Chile/Estados Unidos, 2023), que acaba de chegar à Netflix.
O cineasta espanhol de 48 anos ganhou respeito com produções inteligentes, profundas e impactantes — muitas em tom de pesadelo, do terror filosófico O Orfanato (2007) ao drama fantástico Sete Minutos Depois da Meia-Noite (2016). Quando se preparava para rodar O Impossível (2012) — sobre uma família que sobreviveu ao tsunami de 2004 na Tailândia, com Tom Holland e Naomi Watts no elenco — ele se deparou com o livro de mesmo nome do filme da Netflix assinado pelo jornalista uruguaio Pablo Vierci, amigo dos atletas que sofreram o acidente. Até então, Bayona sabia do episódio pela propagada ótica do sensacionalismo: para sobreviver nos Andes sem comida, os jovens apelaram ao extremo: alimentaram-se dos colegas mortos. A notícia do canibalismo minou a aura de heróis que pairava sobre eles, transformando a narrativa de superação em uma trama à la O Senhor das Moscas. A realidade, porém, foi outra: ao contrário do romance de William Golding, no qual meninos isolados em uma ilha deixam aflorar seu lado selvagem, entre os sobreviventes nos Andes a luta pela vida ensejou altíssima dose de companheirismo e humanidade — até quando a antropofagia se revelou a única opção. “A trajetória dessas pessoas me impactou”, disse Bayona a VEJA (leia abaixo).
O diretor conta que os sobreviventes — hoje, catorze homens — ajudaram no desenvolvimento do roteiro e na preparação dos atores. A convivência com eles impressionou ainda mais o cineasta: “São personalidades muito diferentes entre si, com opiniões e vidas distintas. Mesmo assim, continuam unidos”. Em tempos de guerras e de grandes angústias, o episódio fornece uma lição de esperança para a humanidade. Esse componente de altruísmo foi decisivo já no primeiro dia da tragédia. Enquanto cuidavam dos feridos e choravam seus mortos (vários estavam acompanhados de familiares, inclusive esposas e de uma mãe), um dos atletas sugeriu que o socorro só poderia vir durante o dia — logo, deveriam se abrigar ao entardecer na parte remanescente do avião, isolando frestas e abraçados. Mesmo ansiosos pelo resgate, e com medo de não serem vistos, todos aceitaram o plano, em acordo que os livrou da morte iminente logo na noite inicial. Ao tentar comunicação, conseguiram só sintonizar uma rádio que lhes trazia notícias do mundo lá fora. Assim, ouviram que as buscas haviam se encerrado — e entenderam que estavam por conta própria.
Qualquer tentativa de caminhar para longe do avião era frustrada pelo ambiente hostil, que causava desidratação, desnutrição, cegueira e mal de altitude. Após duas semanas, levantou-se a ideia de consumir corpos mortos. A conversa entre eles para tomar tal decisão envolvia questões que, ali, eram desprovidas de sentido: “Seria pecado? Deus vai nos perdoar? É ilegal? Vamos ser presos?”. Quando parte do grupo se rendeu, um deles, então estudante de medicina, cortou os cadáveres longe dos demais, livrando-os do trauma. Em A Sociedade da Neve, Bayona segue a mesma lógica: só vislumbres do ato são filmados. Entre as façanhas do cineasta estão cenas que contrastam o caos com a imensidão da natureza. Há a primorosa sequência da queda do avião e um roteiro que hipnotiza ao impor a questão: e se fosse você, o que faria para sobreviver? A prova de resistência nos Andes é perturbadora, mas nos deixa razões para o otimismo.
“Busco a luz no que é sombrio”
O cineasta espanhol J.A. Bayona falou a VEJA sobre o filme e revelou por que histórias de sobrevivência o atraem.
Além do drama real, o filme impôs desafios técnicos. Como foi fazê-lo? Foi, sim, desafiador. Filmamos algumas cenas no local do acidente, e a maior parte foi rodada em uma estação de esqui na Serra Nevada. Os atores contaram com apoio psicológico e de um médico — eles tiveram de perder mais de 20 quilos no processo e ainda encararam, de fato, momentos de muito frio.
Seus filmes retratam dilemas reais e fictícios comparáveis a pesadelos. Por que esse viés? O que me interessa mesmo é o que está por trás do pesadelo — como os desejos, as ilusões, as fantasias. Eu busco a luz no que é sombrio, com o intuito de iluminar meus próprios medos.
E qual medo em particular lhe interessou ao fazer esse filme? A solidão. A sensação de estar sozinho, precisando de ajuda, ou a impotência de não poder ajudar a quem precisa.
O que leva de lição? A trajetória dessas pessoas me impactou, assim como os laços que criaram. Notei que são muito diferentes entre si, com opiniões e vidas distintas. Mas continuam unidas e coesas.
Publicado em VEJA de 5 de janeiro de 2024, edição nº 2874