A aposta contundente (e lúcida) de The Handmaid’s Tale em temporada final
A série expõe os perigos da normalização de um mundo onde os direitos humanos são sacrificados em nome de interesses políticos

Longe de Gilead, ditadura teocrática que tomou os Estados Unidos na série The Handmaid’s Tale, a protagonista June, enfim, tira o vestido vermelho que era obrigada a usar no posto de aia. Um detalhe incômodo, porém, permanece na sexta e última temporada, que acaba de chegar ao Paramount+. Nessa distopia assustadora, as aias — mulheres férteis escravizadas para darem filhos à elite religiosa — são ainda marcadas como animais: uma etiqueta de identificação é fixada na hélice da orelha de cada uma delas. June, contudo, se recusa a tirar a marcação. “Eu posso libertar você disso”, diz uma médica à protagonista, vivida por Elisabeth Moss. Ela responde: “Só serei livre quando todas as aias estiverem livres”. A cena dá o tom dos próximos passos de June, uma mulher comum que, diante de uma opressão inominável, entende que lutar é a única opção.
Quando estreou, em 2017, a trama baseada no livro O Conto da Aia, da canadense Margaret Atwood, era um alerta contra a política repressora de Donald Trump em seu primeiro mandato. Ao ameaçar direitos reprodutivos femininos e perseguir pessoas trans, o republicano atraiu comparações com os comandantes de Gilead, que abusam do poder usando a religião cristã como escudo. A série, então, foi de ficção especulativa improvável a uma possibilidade não tão distante assim — e, ironicamente, chega ao fim com Trump de volta ao poder.
Ao longo de seis temporadas, Handmaid’s Tale fez um exame instrutivo do que sustenta uma ditadura — e os perigos de sua normalização. O que torna seu cenário sombrio plausível é o fato de o roteiro ir além dos limites de Gilead. No Canadá da ficção, americanos fugitivos viram refugiados e uma embaixada dos Estados Unidos (ou do que restou do país) exige sanções contra Gilead e ajuda internacional para retomar o território perdido para a ditadura. Entre os dois países, uma vasta terra de ninguém vira trincheira de rebeldes e mercenários. Na última fase, porém, a animosidade canadense contra imigrantes e o sucesso econômico de Gilead fazem com que a nação fundamentalista comece a ser aceita pelo país.
Frente à odiosa acomodação, a postura insurgente de June parece ilusória: como vencer tamanho gigante opressor? Ela contará com uma antiga inimiga como aliada: Serena (Yvonne Strahovski), defensora ferrenha de Gilead, se viu vítima da ditadura que ajudou a criar e agora almeja consertar as fissuras da nação que se desviou dos preceitos cristãos. Nessa luta de Davi e Golias, uma lição fica para o mundo: em tempos sombrios e de pouca esperança, resistir é preciso.
Publicado em VEJA de 11 de abril de 2025, edição nº 2939