Educação, federalismo e o desafio de redistribuir recursos
Debate sobre pacto federativo, especialmente quando se trata de recursos, não pode se esquecer do provérbio “onde está o teu tesouro, aí está o teu coração”
No post anterior, falamos sobre o crescimento e o encolhimento das redes estaduais e municipais de ensino. Os dados sugerem que essas mudanças ao longo dos últimos 70 anos se deram de maneira independente de qualquer política deliberada de acertos, acordos ou pactos entre os entes federados. Neste post, indagamos se o advento do FUNDEF, em 1997, e do FUNDEB, em 2006, teria alterado essa lógica. Ou seja, em que medida essas políticas públicas que tiveram um impacto razoável na redistribuição dos recursos entre os entes federados teriam tido um impacto em promover – ou não – o “regime de colaboração”.
Essa pergunta já foi respondida em um artigo de 2017, de autoria de Gabriela Cruz e Rudi Rocha, que trata dos efeitos do FUNDEF/B. E a resposta é negativa.
Os dados utilizados por nós no post anterior também permitem responder a essa pergunta. Na verdade, FUNDEF e FUNDEB refletem o exercício da função redistributiva que cabe ao governo federal. Dificilmente, estados e municípios entrariam em consenso para se engajar em um exercício redistributivo com “ganhadores” e “perdedores”.
A primeira decisão de repartir recursos se deu num momento em que o governo dispunha de enorme capacidade de negociação política, em 1997, quando da criação do FUNDEF. A segunda decisão, referente ao FUNDEB, foi mais fácil, pois entrou no vácuo da primeira e em um momento em que a expansão das vagas já superava a demanda, exceto no caso das creches. Recursos para expansão e expansão de gastos dificilmente encontram dificuldade para aprovação no Parlamento.
Os dados de matrícula para o período de 1997 a 2006 apresentados no post anterior são bastante frágeis, mas possuem alguma consistência. Nada indica que, no agregado nacional, tenha havido crescimento significativo de matrículas em função da aprovação do FUNDEF e depois do FUNDEB. Isso se deve ao fato de que havia um excesso de matrículas decorrentes dos elevados níveis de reprovação, e que começaram a se reduzir em função de medidas como a promoção automática e programas de aceleração/correção do fluxo escolar.
Quando do advento do FUNDEB, estendendo a redistribuição de recursos para educação infantil e séries iniciais, há dois impactos dignos de nota. De um lado, há uma vigorosa expansão da oferta de vagas em creches públicas municipais. Ao mesmo tempo, há uma redução acelerada da oferta de vagas de pré-escola pelas redes estaduais. Já a oferta das redes municipais permanece estável, pois, àquela altura, as vagas existentes já eram suficientes para atender à demanda já em declínio por conta da redução do crescimento demográfico.
Nesse caso, observamos uma nítida e imediata repercussão de uma política pública baseada em incentivos financeiros, sem a necessidade de qualquer norma adicional de colaboração entre estados e municípios.
Ao mesmo tempo, observamos a eficácia e o limite dessas intervenções: a retirada de recursos do FUNDEB levou os estados a reduzirem a oferta de pré-escolas muito rapidamente – eles não mais poderiam usar recursos do FUNDEB. Já a oferta de recursos para creches não levou a uma explosão das matrículas: o crescimento foi lento e progressivo – pouco mais de 100 mil novas vagas por ano -, e que se estabilizou por volta de 2018.
Esse crescimento da oferta, associado à redução da taxa de crescimento da população, permitiu o atendimento de quase 50% da “demanda”, isto é, da população de até 4 anos de idade. Isso se deve à redução do crescimento demográfico.
Esta reflexão inicial sugere algumas conclusões importantes. Primeiro, existem instrumentos suficientes para que os entes federados executem a sua missão, como ilustrado no caso do FUNDEF/FUNDEB. O governo federal agiu, enfrentando a impopular tarefa de redistribuir recursos dos estados e municípios. Mas também há limitações: a redistribuição ficou dentro dos limites de cada estado, mantendo as distorções redistributivas de nosso sistema fiscal.
Segunda conclusão: políticas com foco bem dimensionado e instrumentos eficazes podem atingir seus objetivos, pelo menos alguns deles. O FUNDEB, por exemplo, ainda que de forma limitada, contribuiu para reduzir a desigualdade entre municípios de uma mesma Unidade Federada. Quando se compara o efeito dessas medidas com tentativas de mudanças grandiosas – como a miríade de metas de um Plano Nacional de Educação –, torna-se claro o que é ou não viável se conseguir mediante instrumentos legais.
Vimos, portanto, que as normas existentes permitiram algum avanço. Se examinarmos o que ocorreu com a mudança de perfil da oferta de vagas entre estados e municípios iremos concluir que isso ocorreu sem qualquer direcionamento do processo de “colaboração”. Os dados agregados sugerem que redes estaduais e municipais de ensino seguiram suas próprias orientações na oferta e redução da oferta das matrículas, respondendo diretamente às mudanças demográficas sem que tenha havido, no geral, evidência de articulação entre diferentes redes. Ou seja, já existem mecanismos que permitem atingir os mesmos fins, ainda que não de forma tão eficiente quanto talvez fosse desejável. Desejável, talvez, mas dificilmente possível, dados os contornos de nosso marco federativo, a inércia e os interesses em jogo, que se manifestam de forma inequívoca na dificuldade que o país enfrenta de realizar uma reforma tributária.
Debates sobre pacto federativo – especialmente quando se trata de redistribuir recursos – não podem se esquecer do provérbio “onde está o teu tesouro, aí está o teu coração”. Dificilmente se poderia imaginar que outros processos de produção de consenso – especialmente quando se trata de realocar recursos – poderiam levar a esses resultados. São elementos importantes para refletir sobre o conceito, implicações e gestão do “pacto federativo”.
Para obter um quadro mais preciso dessa evolução, examinaremos, no próximo post, se há diferença de comportamento entre e dentro das unidades federadas.