‘Vikings’ encontra meio-termo entre a mitologia e a realidade
O protagonista Ragnar e outros personagens da série foram construídos a partir de fatos e contos; acontecimentos estão mais próximos da realidade

A série Vikings, que retorna para a quinta temporada na madrugada desta quinta-feira, é uma feliz combinação de mitos nórdicos, algumas verdades e, naturalmente, uma boa dose de ficção, criada para dar liga e ritmo aos episódios, que contam com roteiros ágeis e surpreendentes.
A criatividade dos roteiristas do seriado, produzido pelo History Channel, pode ser vista na complexidade dos relacionamentos, enquanto figurinos, hábitos e a base para as personagens derivam de fontes históricas. Sem relatos escritos, os feitos da sociedade viking foram transmitidos pelos séculos através da tradição oral, que davam conta de aventuras violentas e, muitas das vezes, vitoriosas. Apenas no século XIII as narrativas foram redigidas, quando a antiga civilização, que viveu seu auge mais de 200 anos antes, já havia chegado ao fim.
Apesar das lacunas históricas, a série criada por Michael Hirst (o mesmo criador de The Tudors) fez a lição de casa. Ela explora com destreza o desenvolvimento da Europa desde o período medieval, ao acompanhar a caminhada de Ragnar Lothbrok (Travis Fimmel), protagonista que começa como um fazendeiro ambicioso e se torna primeiro earl (conde ou suserano) e depois rei na Escandinávia do século IX. Por meio de sua jornada, ocorrem invasões, saques e descobertas.
A série, exibida no Brasil pela FOX Premium, retornou para a quinta temporada na madrugada desta quinta-feira, dia 30, com um episódio duplo, transmitido mundialmente – e que pode ser visto por streaming no acesso premium do aplicativo do canal.
Confira abaixo o que é real, história e inspiração no seriado.
***Alerta: o texto abaixo contém spoilers das quatro primeiras temporadas de Vikings
Ragnar e Lagertha

O casal do início da série foi construído a partir de figuras mitológicas de diferentes narrativas medievais. Ragnar Lothbrok é um dos personagens mais populares da mitologia escandinava, como explica Pablo Gomes, do Núcleo de Estudos Vikings e Escandinavos, grupo com base na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), e autor do livro Poder e Sociedade na Noruega Medieval (Agbook). “Ele foi um líder lendário ou semi-lendário, ligado a relevantes casas reais, como as dinastias Ynglinga e Munsö”, conta o historiador. Contudo, o personagem mitológico não é o mesmo que o espectador da série conhece. “Apesar de termos certeza de que o rei em questão não existiu fora das narrativas mitológicas, existe a possibilidade de ele, dentro da série, ser o resultado de uma mistura de personagens históricos.”
Uma ligação possível do personagem Ragnar é com um rei chamado Regnerus, que é citado na crônica Os Feitos dos Dinamarqueses, do livro Gesta Danorum, escrito pelo historiador medieval Saxo Grammaticus. A obra é fonte para boa parte do conteúdo político da saga.
A guerreira Lagertha, sua primeira esposa na série, aparece na mesma crônica. Segundo o texto, ela seria uma prostituta que Ragnar liberta e que passa a lutar ao lado dele. Logo casam, se separam, ela se casa novamente — assassina o segundo marido, como na série — e passa a governar a Noruega. Gomes é enfático ao afirmar que Lagertha é uma personagem de uma única fonte medieval, embora reconheça que a sua personalidade tem traços que podem lembrar outras mulheres da mitologia ou até personagens muito mais atuais, como a Mulher-Maravilha, por sua coragem e força.
Rollo

O traiçoeiro irmão de Ragnar Lothbrok foi um dos guerreiros mais corajosos do mundo viking. Na série, Rollo dá as costas ao seu povo e se torna um lorde e general francês. Em 911, ele se converte em senhor franco. A troca de lados realmente aconteceu, segundo Leandro Vilar, doutorando em ciências das religiões na Universidade Federal da Paraíba (UFPB). “Na quarta temporada, ele é apresentado como senhor da Normandia, assumindo seu papel histórico”, diz Vilar, antes de destacar que a série antecipou acontecimentos em favor da narrativa. “O seriado é ambientado no século IX e Rollo só se tornou um senhor franco em 911, isto é, no século X.”
O saque a Paris aconteceu entre 885 e 886. Rollo já havia invadido a região de Rouen anos antes. Ele se familiarizou com a navegação local e se tornou um dos principais líderes do cerco à cidade, situação resolvida com pagamento em prata aos invasores e com o oferecimento do saque à Burgundia, via Rio Sena. “O que sabemos é que Rollo foi um dos líderes dos saques e que o cerco a Paris foi resolvido com a entrega de tesouros aos vikings. Se a negociação em si aconteceu e envolveu Rollo, é impossível cravar. Talvez essa possa ser uma maneira de as fontes explicarem toda essa intimidade da monarquia franca com o personagem em questão”, diz Pablo Gomes.
Athelstan

Provavelmente, o monge cristão que conviveu com os pagãos e virou o melhor amigo de Ragnar é ficcional. Faltam registros que provem a sua existência. Mas uma coisa é certa: havia presença católica na Escandinávia. Segundo o professor Johni Langer, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), e membro do Neve (Núcleo de Estudos Vikings e Escandinavos), diversos missionários conviveram e converteram os pagãos em regiões da península. O nome do monge talvez tenha sido escolhido para simbolizar esse grupo de gente, já que “Athelstan” era um nome comum na comunidade anglo-saxã do século IX.
Pedra solar

Devido aos parcos conhecimentos disponíveis sobre o mundo, muito distante da atual era da globalização, traçar cursos de navegação era uma tarefa complexa e arriscada. Por isso, o objeto que aparece bem no início da série foi tão importante — tanto para Ragnar quanto para a história. Usada como bússola, a pedra solar guiou as primeiras aventuras marítimas do protagonista e praticamente iniciou a sua jornada rumo à Inglaterra. Pouco depois, Ragnar obtém uma bússola de fato. Enquanto usava a pedra solar, porém, os vikings tinham uma outra solução para navegar à noite. “O uso tanto da pedra quanto do relógio solar, isolados ou conjuntamente, foi o principal mecanismo de orientação náutica durante o dia. Pela noite, foi o reconhecimento da estrela polar da constelação da Ursa Menor”, diz o professor Langer.
Acessórios de guerra

Para os Vikings, qualquer pessoa livre do sexo masculino podia ter uma arma. Porém, somente os mais ricos possuíam espadas. “Elas custavam caro, pois minérios eram escassos na Escandinávia e era preciso importar metal”, explica o historiador Vilar. “Lanças, machados, arcos e facas eram mais comuns.” Na defesa, eles utilizavam mesmo os belos escudos circulares que vemos na série, feitos de tábuas de madeira. Outra parte importante da batalha era o transporte, feito por meio de navios longos que permitiam navegação em mares e rios. “Essas embarcações eram feitas de madeira e levavam meses ou até um ano para serem concluídas”, conta Vilar. Pobre Floki. O personagem de Gustaf Skarsgård realmente suava ao projetar as embarcações. “Os navios eram bastante engenhosos para a época e região em que foram desenvolvidos.”
Igualdade feminina

A personagem Lagertha é tida como exemplo de guerreira na ficção, e um estudo recente confirmou que um esqueleto de um guerreiro encontrado na Suécia pertencia a uma mulher que viveu há cerca de 1.000 anos. Não se sabe, porém, qual a proporção de cada gênero nos exércitos escandinavos. “Existem escassas evidências históricas e arqueológicas de mulheres lutando em guerras e batalhas. Elas participavam mais ativamente em termos bélicos do momento de defesa dos povoados e fazendas, em casos de ataques inimigos ou hostis”, afirma o professor Langer. Na mitologia, Lagertha participou de pelo menos uma batalha ao lado de Ragnar — mas vestida de homem, como Mulan e Joana D’Arc.
Apesar do destaque maior para o sexo masculino, os escandinavos tinham uma equalização entre os gêneros no sentido legal. “Examinando a literatura medieval, em especial as sagas islandesas e a documentação jurídica um pouco posterior ao fim da Era Viking, podemos perceber que o divórcio poderia facilmente acontecer por iniciativa da mulher”, explica Gomes.
Chegada à Inglaterra e à França

Sobre as invasões, até mesmo por meio de dados históricos é complexo precisar detalhes de como tudo ocorreu, a começar pelo tempo. “Dificilmente vamos entrar em acordo em relação a uma cronologia dos saques porque não havia um plano geral ordenado, mas ataques sucessivos”, explica Gomes. “O que se sabe é que os nórdicos eram mesmo muito ágeis na pilhagem. Além disso, se aproveitaram da fragilidade política pela qual passavam os reinos na atual Inglaterra. Desacostumada a ser saqueada e atacada, a região se tornou um mosaico de vários reinos que se ameaçavam mutuamente, quando os nórdicos passaram a ser mais presentes. Foi lá que a Era Viking foi tradicionalmente inaugurada, com o bastante conhecido ataque ao mosteiro de Lindisfarne, em 793.”
Entre os Reinos Francos, o primeiro ataque de que se tem notícia só veio a acontecer em 799, se perpetuando esporadicamente até mais ou menos 830. Mas o ataque a Paris só aconteceu em 885, após a Grande Invasão, que ocorreu entre 856 e 862. A série mistura dois momentos históricos em um: o Saque de 845, liderado por Reginherus, e o de 885-886, onde Rollo aparece. Sobre Ragnar, Pablo Gomes conta que o ataque é visto nas fontes como algo vingativo, então pode ser que a cena do viking entrando no território franco como se estivesse morto seja verdade, mas não há um registro específico sobre isso.
Águia de sangue

Havia muita violência no mundo nórdico, afinal sua cultura era voltada para a batalha, mas em escala mais circunstanciada do que na série. Um dos momentos mais marcantes dos conflitos é aquele em que é realizada a águia de sangue, método de execução em que os pulmões eram retirados pelas costas do inimigo, atravessando as costelas. O ritual, contudo, divide os historiadores. “O ato de tirar os pulmões hoje é visto como uma imagem detratora, criada pelos cronistas cristãos para difamar os nórdicos pagãos. Não tem base arqueológica”, afirma Langer. Já Alfred Smyth, especialista irlandês sobre a história dos Reis da Escandinávia nas Ilhas Britânicas no século IX, defende que o método realmente acontecia.
Cabelos

As tranças elaboradas que as mulheres usam na série não têm apenas efeito estético. Historicamente, representavam muito mais. A professora Luciana Campos, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e membro do Neve, comenta que os cabelos das mulheres da Era Viking, principalmente as de alta posição social, eram trançados de forma elaborada em alguns casos, mas de forma diferente da apresentada na televisão. “Vikings mostra tranças de inspiração africana, que são muito bonitas, mas não se via nas cabeças de mulheres nórdicas. Os cabelos femininos compridos eram deixados soltos pelas solteiras”, aponta. As nórdicas costumavam trançar os cabelos e depois fazer um nó triplo (o Valknut, ou nó dos mortos) e envolvê-las na cabeça como uma touca. “Usavam esses nós como simbolismos mágicos”, declara a professora.
Peles e joias

O inverno no norte da Europa sempre foi rigoroso e por isso é fácil imaginar a necessidade das roupas pesadas durante o período mais frio do ano. Portanto, é verdade que homens e mulheres faziam uso de peles de animais como uma parte importante da indumentária. “As peles não possuíam somente um efeito estético, mas mantinham o corpo aquecido durante todo o tempo. Além das peles, eles também usavam roupas que eram forradas com penas de diversas aves, como uma forma de aquecimento. Há evidências de que havia até fios de cabelo na tecelagem de roupas”, afirma Luciana. Assim como na série, as joias faziam parte dos enfeites utilizados por homens e mulheres como um importante símbolo de status social. “Os broches que seguravam os aventais femininos, bem como os mantos e capas masculinas, eram obras de ourivesaria elaborada e somente os mais ricos podiam ostentá-los. Muitas joias eram feitas de prata e a portabilidade facilitava o comércio”, conclui a professora.
Fé

Na Era Viking, tudo acontecia em nome dos deuses e acreditava-se que a recompensa final se daria em Valhalla, um grande salão onde metade dos mortos, os guerreiros honrados, seria recebida com batalhas e festa. “Eles eram muito devotos e a religião se ligava a tudo, desde aspectos sociais e materiais, até questões sexuais e morais. Os sacrifícios eram voluntários em alguns casos, mas em outros capturavam inimigos, especialmente em homenagem ao deus da guerra, Odin”, diz o professor Johni Langer. Além dele, outros deuses recebiam adoração. Thor, o deus do trovão e dos raios, tinha destaque, mas Freyja foi a principal deusa a ser cultuada entre os vikings, com base nos relatos históricos e arqueológicos. Freyja estava relacionada não só à fertilidade das mulheres, mas também dos campos”, diz o historiador Pablo Vilar.
A prole

Com a morte de Ragnar, ponto central da trama, outros personagens ganham mais destaque, como seus descendentes. “Vikings é uma saga geracional: não apenas sobre Ragnar, mas sobre seus filhos e como suas aventuras moldaram o mundo”, disse Michael Hirst em entrevista ao site da revista Entertainment Weekly. Na crônica Gesta Normannorum Ducum, de William of Jumièges, há um rei de origem anglo-escandinava de nome Lothbroc, que mandou seu filho Bjórn Flanco-de-Ferro ao exílio. Bjorn… Exílio… Soa familiar! Contudo, Ivarr, o “sem ossos”, é quem se destaca. Não se confirma historicamente a versão em que ele nasce com uma doença degenerativa que atinge seus membros inferiores, como vemos na série. Mesmo porque, naquela época, crianças que nasciam com alguma deficiência eram abandonadas — na série, Ragnar leva o bebê para a floresta, para deixá-lo ou matá-lo por lá, mas a mulher o salva e o mima, daí Ivarr ser um personagem tão cruel.
O que se sabe é que ele se tornou rei em Dublin. Então, se de fato possuía deficiência, ela foi compensada de alguma forma — uma incrível força nos membros superiores, por exemplo.
O laço familiar de pai e filho também não se confirma. “Nos Anais Irlandeses, ele é mencionado atacando a Irlanda, mas não há indicações de que fosse filho de Ragnar”, segundo Leandro Vilar.