O real e a ficção em ‘Mank’, sobre o conturbado bastidor de ‘Cidadão Kane’
Indicado ao Oscar em dez categorias, o filme da Netflix acompanha os percalços de Herman J. Mankiewicz para escrever o roteiro do clássico dos anos 40
O drama biográfico Mank lidera a corrida pelo Oscar 2021, com dez indicações. O filme, dirigido por David Fincher, conta a história de Herman J. Mankiewicz (interpretado por Gary Oldman), o Mank do título, autor do roteiro de Cidadão Kane (1941). Ambientado na Hollywood dos anos 1930, o filme retrata as condições para lá de estranhas em que o roteiro foi escrito, dada a personalidade excêntrica de Mank e ao período peculiar que Hollywood vivia, afetado pelos efeitos do crash da bolsa de Nova York, em 1929 — que mais tarde culminaria na era de ouro do cinema americano. Confira o que é verdade e ficção em Mank.
O corte de 50% dos salários em Hollywood
No filme, Louis B. Mayer (Arliss Howard), um dos fundadores do estúdio Metro-Goldwyn-Mayer, faz um emocionante discurso em que convence os funcionários a trabalharem ganhado apenas 50% do salário durante a crise. Na vida real, Mayer realmente cortou o salário dos funcionários quando o presidente Franklin D. Roosevelt declarou um feriado bancário de uma semana, em 1933. Na ocasião, ele incentivou as pessoas a continuarem trabalhando após prometer pagar a outra metade do salário quando o feriado acabasse, mas ele nunca cumpriu a promessa — detalhe que o filme não mostra.
Herman Mankiewicz era viciado em álcool e jogos de azar
Em praticamente todas as cenas do filme, Mank está alcoolizado ou bebendo, quando não está também jogando cartas ou fazendo apostas absurdas. De fato, há diversos registros do comportamento errático de Mank na vida real, com relatos de bebedeiras e apostas. Por causa de sua personalidade grosseira, ele perdeu oportunidades de empregos e quase se divorciou. Em 1939, praticamente falido, ele aceitou o convite de Orson Welles para trabalhar no roteiro de Cidadão Kane.
Mank salvou uma população inteira de judeus em uma vila alemã do nazismo
Em certo momento do filme, a enfermeira Fraulein Freda (Monika Gossmann) convence a assistente Rita Alexander (Lily Collins) a continuar trabalhando com Mank após dizer que foi resgatada por ele do nazismo na Europa. Freda diz ainda que Mank salvou todos os moradores da vila onde ela morava na Alemanha. Na vida real, Freda não foi salva por Mank. Mas o roteirista de fato passou grande parte da década de 1930 ajudando financeiramente judeus alemães a fugirem da Alemanha durante a ascensão de Hitler. Nos Estados Unidos, ele ajudou estes imigrantes a encontrarem emprego. Os pais de Mankiewicz, aliás, eram imigrantes judeus alemães que chegaram aos Estados Unidos em 1892.
O discurso de Mank na festa do magnata William Randolph Hearst
Em um dos momentos mais tensos do filme, Mank visita o suntuoso castelo de Hearst (Charles Dance) na cidade de San Simeon, na Califórnia, participando de uma festa a fantasia. Mank realmente era convidado frequente de Hearst e o castelo serviu de inspiração para a criação de Xanadu, em Cidadão Kane. Hearst gostava da presença de Mank, mas suas bebedeiras o tornaram um convidado inconveniente com o tempo. Porém, a última cena do filme é ficção. Mank nunca fez um discurso falando de sua ideia de um filme sobre Dom Quixote moderno, inspirado em Hearst.
Mank escreveu o roteiro de Cidadão Kane deitado numa cama após um acidente de carro
No longa, Mank vai viver em um rancho, em Victorville, na Califórnia, com todas as despesas pagas por Orson Welles (Tom Burke). A ideia de Welles era prover um lugar tranquilo, longe do álcool e da jogatina, para que Mank pudesse escrever em paz o roteiro de Cidadão Kane. Boa parte da estadia no lugar, no entanto, o roteirista passa deitado numa cama, convalescendo de um acidente de carro. Na vida real, Mank realmente sofreu um acidente de carro quebrou a perna em três partes diferentes e foi viver no rancho na companhia de John Houseman (Sam Troughton), uma enfermeira alemã e a secretária Rita Alexander.
Herman Mankiewicz escreveu sozinho o roteiro de Cidadão Kane
No filme, Mank briga com Orson Welles pela autoria de Cidadão Kane e exige do cineasta que o creditasse como autor do roteiro. Até hoje, no entanto, pairam dúvidas sobre a real autoria do roteiro. Uma reportagem da revista New Yorker, de 1971, com entrevistas com a secretária Rita Alexander e John Houseman, concluiu que Welles não escreveu nenhuma linha. Por outro lado, Welles garantiu em uma entrevista a Esquire, também em 1971, que o primeiro rascunho foi escrito por ele e o outro por Mank e que os uniu mantendo o que gostava de cada um. A versão da história mais aceita é a de que Mank escreveu o roteiro e que Welles fez revisões e acréscimos fundamentais na produção.
Orson Welles ofereceu 10 mil dólares para que Mank abrisse mão da autoria do roteiro
No filme, Wells briga com Mank, rasga o roteiro e joga as páginas no chão, logo depois de oferecer 10.000 dólares para que o colega desistisse da autoria do filme — mas Mank é irredutível. Welles cede e vai embora do rancho dizendo que o creditará como co-autor. Não há provas de que isso tenha acontecido, apenas boatos. No filme, David Fincher abraçou essa versão para deixar a trama mais dramática.