‘Nada Ortodoxa’: A história real por trás da bela minissérie da Netflix
Baseada em uma biografia homônima, a trama indicada ao Emmy acompanha Esther, uma jovem judia que foge de sua comunidade ultraortodoxa
Da janela de um apartamento em Nova York, a jovem Esther Shapiro (Shira Haas) termina uma xícara de chá em um só gole e se volta, ansiosa, para dentro do quarto. Tira um envelope recheado de notas em dólares da gaveta de roupas íntimas, uma pequena bolsa necessaire com produtos de higiene básica e, de uma cabeça de manequim decorativa, mais algumas notas altas – estas, em euro. Arranja os pertences em uma pequena sacola, beija o mezuzá afixado no umbral da porta e não olha para trás ao sair do apartamento. No térreo do prédio, sua fuga é atrapalhada por duas moças tagarelas, que a desejam um feliz Shabat e a afugentam para casa de novo, onde abandona a sacola e espalha os poucos pertences pelo corpo. Na segunda tentativa de fuga, Esther se sai vitoriosa e deixa para trás a comunidade hassídica Satmar, uma das vertentes ultraortodoxas do judaísmo, e o infeliz casamento arranjado com Yanky (Amit Rahav). Ela embarca para Berlim, na Alemanha, na tentativa de se livrar das regras do clã que nunca lhe fizeram jus, e tão logo é procurada pelo marido abandonado e pelo truculento primo dele, Moishe (Jeff Wilbusch). Assim se apresenta a ótima minissérie de quatro episódios Nada Ortodoxa, baseada nas memórias da escritora Deborah Feldman — que hoje, como a protagonista, vive em Berlim e trabalhou como conselheira da produção da Netflix, recentemente indicada a oito categorias do Emmy 2020.
Embora tenha como base a história de vida de Deborah, a série mistura realidade com ficção à medida em que fantasia boa parte da trama: boa parte do que é visto em solo alemão é ficcional, ao passo que os acontecimentos em Nova York são inteiramente norteados pela biografia da jovem judia. Cinco aspectos de Nada Ortodoxa foram selecionados pela equipe de VEJA para investigar o quão verossímil é a produção Netflix. Confira as porcentagens abaixo:
A fuga de Esther para Berlim
Depois de ser amparada por sua professora de piano, Esther consegue a documentação necessária para viajar e, pelas suas raízes maternas, provar cidadania alemã. É por causa da mãe, aliás, que a protagonista escolhe Berlim como destino final. Grávida, logo se enturma com um grupo de jovens músicos e descobre um mundo em muito diferente do que estava acostumada. A ida de Esther para a Alemanha, no entanto, é inteiramente ficcionalizada pela produção de Nada Ortodoxa. Embora tanto a personagem da ficção quanto a da realidade terminem em Berlim, as motivações e as linhas temporais divergem. Na história real, Deborah Feldman primeiro se mudou de bairro com o marido ao deixar a comunidade ultraortodoxa, com quem teve um filho antes do divórcio. Foi somente depois de publicar seu segundo livro de memórias, Exodus, que decidiu se mudar para Berlim com o menino, motivada por um desejo de se reencontrar com suas raízes judaicas e entender o trágico passado do Holocausto vivido pela comunidade.
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Clique e Assine“A série tem dois níveis: um retrata o passado de Esther em Nova York, outro o presente dela em Berlim. Embora os flashbacks sejam muito parecidos com o que é descrito na biografia, tudo que acontece em Berlim é inventado”, explicam as criadoras Anna Winger e Alexa Karolinski em entrevista à revista Vogue do Reino Unido. “Um motivo para isso é que Deborah é jovem, e nos pareceu injusto contar sua história exata se ela ainda está em construção. Também queríamos expressar sua força interna de alguma forma e, para isso, desenvolvemos outros personagens, como o marido dela, Yanky, e o primo dele, Moishe.”
O primo Moishe
Desde o primeiro instante em que o personagem de Jeff Wilbusch é introduzido na trama da minissérie, fica claro que Moishe não é flor que se cheire. Em contraste ao primo ingênuo e despreparado, ele demonstra ser impetuoso e truculento, uma espécie de valentão que vive seus próprios conflitos com o rigor da religião (ele toma bebidas alcoólicas, joga poker, frequenta casas de prostituição, fuma cigarros). Seu papel é claro: garantir, de uma forma ou de outra, a volta de Esther para Nova York. Moishe, na verdade, foi criado pelas roteiristas como uma forma de tornar a narrativa mais atrativa para a TV – na qual Esther é a mocinha e ele, o vilão.
A vida sexual exposta à família do marido
A minissérie não poupa esforços ao narrar os dramas de Esther com sua intimidade exposta à família do marido. Como parte da cultura ultraortodoxa, é esperado que as esposas engravidem – e rápido –, a fim de oficializar o casamento e ter sucesso na união das duas famílias. Esther e Yanky, no entanto, enfrentam dificuldades para ter filhos, já que a moça sofre de uma condição chamada vaginismo, uma disfunção sexual que torna a relação muito dolorosa e quase impossível. Yanky compartilha cada dificuldade com a mãe, que, invés de acolher a nora, a ameaça e a humilha. Isso realmente aconteceu na vida real, ainda que a trama imagine um ou outro detalhe da situação: Deborah enfrentou críticas e fofocas de amigos e familiares que a cobravam de uma gravidez, que, no fundo, era indesejada. Em entrevista à revista americana People, ela explica que o trauma de ter sido forçada a ter relações sexuais a fez perder a esperança em sua família e na comunidade judaica. “Depois de ter sido tão pressionada a engravidar, foi emocionalmente devastador quando finalmente aconteceu e eu percebi que estava gerando uma criança que teria a mesma vida que eu tive”, disse Deborah. Hoje, vive com o filho pré-adolescente em Berlim e divide a guarda com o ex-marido, que o vê algumas vezes por ano.
O gosto por música e outros pecados
Grande protagonista dos acontecimentos passados em solo alemão, o Conservatório de Música foi inventado e, junto dele, o talentoso grupo de jovens que acolhe Esther. Porém, ele esconde outros fundos de verdade. O instituto se torna o sonho da moça, que busca uma bolsa de estudos oferecida a músicos refugiados. Proibida de cantar em público na comunidade ultraortodoxa, Esther se desvencilha de vez do passado na belíssima performance final no palco do conservatório. Na realidade, o interesse da jovem judia era outro: literatura. Desde criança, se esgueirava em bibliotecas para ler livros (um pecado aos olhos ultraortodoxos judeus), em especial romances como Mulherzinhas, Anne de Green Gables e as tramas de Jane Austen. Ao deixar sua comunidade em 2006 com o marido, Deborah estudou literatura na Sarah Lawrence College, onde foi introduzida a um mundo completamente novo: em artigo ao jornal britânico The Guardian, chegou a dizer que estava “consumida por uma obsessão por tudo que sabia ser pecaminoso”, como ir a baladas, beber cerveja, flertar com garotos e comer carne de porco — “pecados” que ela vive na série. “Eu queria ver o mundo, usar jeans, dirigir um carro, aprender a tocar piano – todos os quais eram sonhos impossíveis para uma mulher das minhas circunstâncias“, escreveu ela.
Histórico familiar: pais e criação
Um dos únicos elos familiares mantidos por Esther em sua fuga é o com sua avó: junto aos poucos pertences que leva no corpo ao deixar o apartamento em Nova York, está uma fotografia 3×4 da matriarca. Assim como na história de Deborah, Esther foi criada pelos avós – estes, sobreviventes do Holocausto – e teve uma infância tipicamente ultraortodoxa, onde aprendeu a ser devota à religião e a falar o idioma iídiche. São nos detalhes, no entanto, que a ficção diverge da vida real: enquanto a mãe de Esther a abandona quando ela própria foge para Berlim, a de Deborah permaneceu em Nova York, onde cortou os laços com a comunidade hassídica e se assumiu lésbica. Na trama, a jovem só descobre da sexualidade da mãe quando a encontra na Alemanha. Outro ponto de divergência está nas condições de saúde do pai: apesar de não ter sido alcoólatra, como mostra a minissérie, ele teria sofrido de problemas mentais e, por isso, não pôde criar a filha sozinho.