Filme ‘Joaquim’: romance inventado esquenta trama de Tiradentes
Muitos ruídos existem ao redor de Tiradentes, conta o cineasta Marcelos Gomes: 'os próprios historiadores não têm uma visão unânime sobre o personagem'
Existem apenas dois documentos conhecidos relacionados a Joaquim José da Silva Xavier: sua certidão de batismo e os Autos de Devassa da Inconfidência Mineira, com o processo judicial movido contra os rebeldes do movimento — processo que resultaria na sentença de morte na forca, na decapitação e no esquartejamento do corpo, exibido em lugares públicos, de Tiradentes, como era conhecido e entraria para a história o personagem, em 1792. Por saber disso, ao ser convidado por produtores para fazer uma biografia do mártir, o diretor pernambucano Marcelo Gomes perguntou se teria liberdade para preencher as lacunas que existiam. “Me disseram que sim”, contou o diretor ao blog É Tudo História durante o Festival de Berlim, onde Joaquim, agora em cartaz no Brasil, foi exibido pela primeira vez, em competição pelo Urso de Ouro.
Depois de ler algumas biografias, o cineasta chegou à conclusão de que os próprios historiadores não têm uma visão unânime do personagem. “Tem de tudo. Tem gente que diz que ele era ingênuo, tem gente que diz que era burguês. Tem gente que diz que ele teve papel fundamental na Inconfidência, tem gente que diz que ele é quase Jesus Cristo.” À falta de uma imagem clara, ele criou o próprio Joaquim (Julio Machado), que no filme é visto antes da sua entrada no movimento. Um dos destaques do longa, fator que no enredo serve como motivação para as ações do alferes, é o seu romance com uma escrava, fato sem confirmação histórica.
No prólogo do filme, Gomes sintetiza as informações históricas que queria transmitir. A cena mostra a cabeça de Tiradentes espetada num poste e traz uma narração em off, num tom meio Memórias Póstumas de Brás Cubas, em que ele diz que é estudado na escola, virou feriado, foi o único a perder a cabeça — os outros inconfidentes foram presos ou degredados — e que sua sentença talvez tenha sido pior por ser o mais pobre ou o de sangue mais quente. “Essas são as principais teorias dos historiadores”, disse Gomes. “E ele foi mesmo herói. No meio do julgamento, enquanto os revoltosos diziam que não tinham nada a ver com o movimento, ele foi e disse: ‘A culpa é toda minha’. E é verdade que afirmou que, se tivesse dez vidas, dez vidas daria para salvar os inconfidentes. Morrer de forma nobre é um ato heroico.”
Pobre e sujo
Ao contrário de outros filmes de época, em Joaquim os personagens não trocam de roupa a toda hora. O protagonista, na maior parte do tempo, está metido no seu uniforme de alferes, cabelos longos, desgrenhados, dentes sujos. Apesar de a região ser rica em ouro e em pedras preciosas, o entreposto de checagem onde Joaquim fica é simples, no meio do nada. Para reproduzir a vida nas Minas Gerais daquela época, Marcelo Gomes recorreu à História da Vida Privada no Brasil. “Aprendi como as pessoas viajavam, como elas comiam, como sonhavam”, disse. “As pessoas só tinham uma roupa. Tem uma mulher pedindo autorização ao padre para não ir mais à missa porque não tem mais roupa.”
Profissão
Alferes da Coroa Portuguesa, Tiradentes trabalhava num posto de checagem na região mineradora. Ele caçava contrabandistas e os entregava à Coroa Portuguesa, como aparece no filme.
Frustração profissional
Em Joaquim, o protagonista aparece reclamando diversas vezes a que sua promoção a tenente nunca chega. “Nos Autos de Devassa, ele sempre diz: ‘Eu queria ser tenente, mas Fulano de Tal que era neto de não sei quem virou tenente. Aquilo ali é pura história”, conta Marcelo Gomes. No filme, serve também para explicitar as origens do nepotismo, tão prevalente na sociedade brasileira. Como o cineasta estava à procura das razões que fizeram Joaquim José passar de funcionário da Coroa Portuguesa a participante da Conjuração Mineira, que lutava pela Independência do Brasil, essa frustração profissional parecia um motivo sólido. Mas não há registros em que o personagem explicita as suas razões.
Preta
À procura de motivos que o levaram a lutar contra a Coroa Portuguesa, Marcelo Gomes achou que um romance poderia estar no centro dessa transformação. Assim surgiu Preta (Isabel Zuaa), uma escrava do posto de checagem, responsável pela comida dos soldados. “Numa mudança de paradigma tão radical como a de Joaquim, era preciso que ele se pusesse na pele da pessoa que está sofrendo a parte mais dolorosa e cruel do colonialismo, que está sendo violentada por ele, que é a escrava. Em Casa-Grande & Senzala, Gilberto Freyre diz que a diferença da colonização portuguesa no Brasil, comparada à inglesa, é que eles iam com a família. Os portugueses, na maioria das vezes, vinham sós. Exploravam, pegavam o dinheiro e voltavam para Portugal. Por isso, era mais comum a violação de africanas. E uma das lendas da época é que, se eles tivessem sífilis e violentassem uma escrava virgem, seriam curados. Então, Freyre diz que, antes de civilizar-se, o Brasil sifilizou-se. Lógico que uma coisa como essa me inspira a pensar que, se Joaquim se apaixona por uma mulher que está sofrendo a violência sexual que ela sofre, vai se colocar na posição dela e vai ver o lado mais cruel e obscuro do colonialismo.”
Sertão Proibido
No filme, Joaquim aceita uma missão para o chamado Sertão Proibido, uma área selvagem e não explorada das Minas Gerais, para conseguir pedras preciosas e libertar Preta – a promessa era a de que ele ganharia uma porcentagem do que descobrisse. “Ele realmente foi mandado para o Sertão Proibido”, disse Marcelo Gomes. Embora seus motivos não necessariamente passassem pela libertação de uma escrava que amava, alguém morando na região dificilmente recusaria tal proposta.
Hip hop
Em sua missão ao Sertão Proibido, o Joaquim do filme vai acompanhado de Matias (Nuno Lopes), um fidalgo português degredado para o Brasil por bigamia (o que realmente acontecia), do mineiro Januário (Rômulo Braga), do seu escravo João (Welket Bungué) e do índio e guia Inhabumpé (Karai Rya Pua). Joaquim não se cansa de dizer que, por ser filho de português, também é português. “É uma questão histórica, do pensamento colonial. Na época, todo o mundo queria ser português. No século XIX, francês. No XX, americano”, diz Marcelo Gomes. Depois de uma bebedeira, Joaquim acorda e presencia uma cantoria – um “hip hop”, como prefere o diretor – entre o africano e o índio, em suas línguas nativas. “Ali, ele percebe que é o nascimento de uma nação, que não é portuguesa”, afirmou Gomes. Claro que a cena é fictícia e simbólica, mas o diretor a defende: “O Brasil deve ter nascido por meio de uma música, né? Que é nossa riqueza maior e vem dessa miscigenação”.
Quilombo
Durante uma viagem, Joaquim é sequestrado. E é assim que reencontra Preta, agora chamada Zuaa e líder de um quilombo. “A gente aprende muito sobre capoeira e candomblé, que são heranças africanas maravilhosas, mas não tanto sobre o sentimento de revolta representado pelos quilombos”, disse Gomes. Ele usou a impossibilidade desse amor para que, no filme, o personagem a canalizasse para o sonho de fazer a revolução. “Porque com o sonho da independência podem acabar os quilombos, e ele talvez pudesse até reencontrar o amor da vida dele. E quem sabe seu ato de heroísmo foi em nome desse amor.”
Leituras
Durante muito tempo, pensou-se que Tiradentes fosse exclusivamente um homem de ação. “Era o cara que, em todo lugar que chegava, começava a fazer discurso. Tinha sangue quente. Então, trouxe isso também para o filme”, disse Gomes. Essa personalidade explosiva, inclusive, pode ter sido uma das razões pelas quais acabou severamente punido. Mas recentemente ficou mais claro que ele também deve ter tido acesso a obras iluministas da época, como o Recueil, uma compilação das Constituições dos Estados americanos e outros textos dos Estados Unidos, que tinha declarado sua independência em 1776. Esse é o tema do livro O Tiradentes Leitor, de Rafael de Freitas e Souza, que também serviu de base para o longa-metragem. No filme, Joaquim recebe o exemplar das mãos de um personagem chamado simplesmente de Poeta (interpretado por Eduardo Moreira), sem especificar se Claudio Manoel da Costa ou Tomás Antônio Gonzaga, dois dos poetas famosos da Inconfidência. “Como eram em francês, alguém tinha de ler para ele”, explicou Gomes. “Mas os mineiros tiveram, sim, acesso às ideias iluministas.”