D. Pedro II teve uma múmia? O real e a ficção de ‘Nos Tempos do Imperador’
Novela global se vale de muita licença poética para contar a história do Brasil imperial no século XIX
No ar desde o início do mês, a novela Nos Tempos do Imperador caiu na malha fina das redes sociais depois de exibir uma cena infame em que Samuel (Michel Gomes), um escravo fugitivo do século XIX, faz uma comparação desproporcional entre o modo como brancos tratavam os negros escravizados e o “preconceito reverso”, quando Dom Olu (Rogério Brito) nega estadia à Pilar (Gabriela Medvedoski), uma mulher branca, na Pequena África — um refúgio para negros libertos e fugidos. O caso que levou uma das autoras e pedir desculpa publicamente ainda chamou a atenção para o excesso de liberdade poética do roteiro ao criar o relacionamento inter-racial entre Samuel e Pilar, pegando leve nos dilemas que um romance do tipo envolveria na época.
É compreensível a falta de apego do folhetim aos fatos, assim como aconteceu com sua antecessora Novo Mundo, não só por se valer da liberdade poética e pela necessidade de preencher muitos capítulos, como também pelo horário de exibição: na faixa das seis, a novela deve ser leve e bem-humorada. Mas para tudo há limite: tanto que a emissora tem planos de mexer nos próximos capítulos, para tornar a novela menos falha.
A partir de biografias da família imperial e de estudiosos do tema, reportagem de VEJA aponta o que é real e o que é pura ficção na novela protagonizada por Selton Mello no papel de Dom Pedro II. “Até existe fundamento histórico, mas é tudo extremamente fabulizado”, analisa Alberto Luiz Schneider, professor de história do Brasil.
O pedido de casamento de Solano Lopez
Logo no primeiro episódio, a produção entregou ao espectador uma cena difícil de engolir: Solano Lopez, então filho do presidente paraguaio Carlos Antonio López, chega ao Brasil acompanhado de alguns soldados e se apresenta a Dom Pedro II, propondo uma aliança que seria selada com o casamento dele e da princesa Isabel, ainda criança na época. Ao receber uma negativa, Lopez afirma que o imperador irá se arrepender e rasga um mapa da América do Sul ao meio com sua espada. “Não houve nada disso, não há nem evidências de visitas”, disse o historiador Alberto Luiz Schneider, professor de Brasil Império na Pontifícia Universidade Católica (PUC), em São Paulo.
A ideia de que Solano Lopez tivesse interesse em Isabel, porém, não surgiu do nada. Charles Ames Washburn, embaixador americano no Paraguai, afirma no livro History of Paraguay que Solano tinha interesse em se casar com uma das princesas brasileiras para unir os impérios — daí, provavelmente, veio a inspiração para a cena novelesca. “É consenso que falta documentação a respeito do assunto no Museu Imperial, no Itamaraty e com os descendentes”, aponta a historiadora Regina Echeverria na biografia A História da Princesa Isabel: Amor, Liberdade e Exílio (2016).
Dom Pedro II e sua múmia
Em seu gabinete, Dom Pedro II troca ideias com um amigo inusitado: uma múmia… em um sarcófago. Mais tarde, o imperador revela à Isabel que a múmia era de um sacerdote egípcio e foi comprada por seu pai, Dom Pedro I. A cena é tão peculiar que só poderia ser fruto da realidade, mas alguns detalhes divergem. Em 1826, um comerciante italiano partiu rumo à Argentina para vender uma série de artefatos egípcios, mas acabou ficando pelo Rio de Janeiro. Aqui, leiloou toda a coleção, incluindo cinco múmias, para Dom Pedro I — uma dessas é a companheira de papo de Dom Pedro II. Na vida real, o xodó do imperador, com quem ele supostamente conversava, era a múmia de uma cantora chamada Sha-Amun-en-su, que ele ganhou de presente do chefe de estado do Egito em 1876, durante sua segunda viagem ao país. O artefato foi mantido no gabinete de Dom Pedro II até a proclamação da República, em 1889, quando passou a fazer parte do acervo do Museu Nacional, como relata a história no site da instituição.
Amante da fotografia
Parte da abertura da novela, Dom Pedro II surge como fotógrafo com uma câmera da época. Segundo a biografia As Barbas do Imperador: Dom Pedro II, da historiadora Lilia Moritz Schwarcz, “além de dedicar-se pessoalmente à fotografia, o imperador foi um grande incentivador da entrada de profissionais da área no país e passou a veicular e a distribuir sua imagem sobretudo em fotos”. A ligação do monarca com a fotografia começou cedo: Dom Pedro II adquiriu um daguerreótipo — a primeira “máquina fotográfica” comercializada — aos 14 anos, menos de um ano depois da invenção ser anunciada na Europa. Muito provavelmente, ele foi o primeiro fotógrafo nascido em solo brasileiro e, ao ser banido do país, depois da proclamação da República, deixou à Biblioteca Nacional uma coleção de cerca de 25.000 fotografias — algumas delas podem ser conferidas no site da instituição.
A primeira médica do Brasil
Mocinha com ares revolucionários, Pilar (Gabriela Medvedovski) foge de casa decidida a se tornar a primeira médica do Brasil. Mesmo gabaritando o teste para a Faculdade de Medicina de Salvador, ela é impedida de cursar a universidade, e vai até o Rio de Janeiro pedir para que Dom Pedro II autorize os seus estudos. Pilar, especificamente, não existiu, mas se mostra uma mistura de duas mulheres reais: as doutoras Maria Augusta Generoso Estrela (1860-1946) e Rita Lobato (1866-1954). A primeira, formada nos Estados Unidos em 1881 com uma bolsa de estudos fornecida por Dom Pedro II, foi a primeira mulher brasileira a exercer a profissão, enquanto a segunda foi a primeira diplomada em medicina por uma universidade brasileira, em 1887, pela Faculdade de Medicina da Bahia — história relatada no livro A Primeira Médica do Brasil, de Alberto Silva. Ambas as mulheres, ao contrário de Pilar, tiveram o apoio da família para buscar o diploma, e não há relato de romances inter-raciais.
Os malês
No primeiro episódio, Samuel (Michel Gomes) se dirige a um grupo de escravos que invadiu a fazenda de seu pai, o coronel que abusou de sua mãe, em árabe. O grupo em questão retrata os malês, escravos revolucionários de origem muçulmana que eram o terror dos senhores de engenho da época. “Eles vinham de uma região muçulmana da África, alguns deles alfabetizados. Falavam e escreviam em árabe. Alguns mestres até davam aula escondido para os mais novos”, explica o pesquisador Fernando Granato, autor de Bahia de Todos os Negros, sobre os levantes de escravos do período imperial. Em uma cena no Rio de Janeiro, Samuel é pego falando árabe na rua, e acaba preso acusado de ser um malê — o que, segundo Granado, acontecia com certa frequência. “Há centena de casos nos registros, todas as práticas dos malês eram reprimidas. Os que conquistavam a liberdade, o governo fazia o que podia para que voltassem para a África.”
Luísa, o grande amor do imperador
O romance intenso entre Dom Pedro II e a condessa de Barral (Mariana Ximenes) é o ponto mais fiel à história. “Essa história é bem crível, de todos os pontos, é a mais fundamentada”, diz o historiador Alberto Luiz Schneider. Os dois se conheceram ainda pequenos, e se envolveram na vida adulta, quando a condessa foi contratada como tutora das princesas Isabel e Leopoldina. Da interação diária com o imperador surgiu um romance longo e duradouro, que se estendeu mesmo à distância, com troca de cartas entre os dois quando Luísa voltou à França, para acompanhar o marido. “Condessa. Você sabe quem ocupou completamente meu coração. Que culpa tenho eu de que ainda está me dizendo que é verdadeiramente seu”, diz um dos escritos reproduzidos na biografia Condessa de Barral, a Paixão do Imperador, da historiadora Mary Del Priori. As longas caminhadas que o casal compartilham na novela também são descritas na obra.
Pequena África, um refúgio para negros e seu príncipe liberto
A novela coloca a Pequena África como uma espécie de quilombo urbano no Rio de Janeiro, refúgio para escravos libertos e fugidos. O local realmente existiu, e era um centro de cultura, música e religião africana. “A partir de 1835, muitos escravos que estavam na Bahia fogem para o Rio de Janeiro e começam a formar um núcleo de convivência perto da região portuária, onde se formou a Pequena África”, conta Granato. Já o personagem Dom Olu (Rogério Brito) é mais controverso. Descrito como Rei da Pequena África na novela, ele provavelmente é inspirado em Dom Obá II, uma figura histórica que, assim como Dom Olu na novela, foi relativamente próximo de Dom Pedro II e exercia certa liderança na região, por descender de uma linhagem nobre de seu país. Na produção, aliás, Obá é pai de Olu, como conta o líder à Pilar. A trama, porém, toma muitas liberdades poéticas. Enquanto Dom Obá II nasceu na Bahia, filho de escravos libertos, e só foi se fixar no Rio de Janeiro depois da Guerra do Paraguai, na qual lutou como voluntário, a novela apresenta Olu como líder da região ainda na primeira metade do século XIX, bem antes do conflito, que começou em 1864. Outro detalhe é que a novela conta que o povo se uniu para comprar a alforria de Dom Olu, enquanto Dom Obá já nasceu livre.
Dom Pedro II abolicionista
Durante uma viagem ao Mato Grosso, Dom Pedro II lamenta com a esposa: “a escravidão é um pesadelo recorrente que atormenta as minhas noites”. A cena é uma das primeiras que aponta para a imagem romantizada de um imperador abolicionista e, mais do que isso, benevolente. A ideia perdura pelo resto da novela, e condiz com um imaginário popular criado em torno do monarca, mas a realidade tinha mais camadas do que isso. “Ele não era um militante a favor da escravidão, mas conviveu muito bem com ela durante o seu governo, que durou quase 50 anos, e colheu seus frutos”, aponta o historiador Alberto Luiz Schneider, professor de Brasil Império na Pontifícia Universidade Católica (PUC), em São Paulo. O imperador chegou a chancelar a lei do ventre livre, que abriu caminho para a abolição, mas o ato não teve efeito na prática, e ele lavou as mãos depois disso. “Era um sujeito antenado e tinha plena consciência de que a escravidão brasileira estava na contramão do mundo. Se por um lado tinha a vergonha internacional da escravidão, por outro, ele não queria enfrentar a base social que garantia a sustentação política da monarquia.”
Dom Pedro II e a família
A relação de Dom Pedro II com a família, no geral, é bem fiel. Dom Pedro II e Teresa Cristina (Letícia Sabatella), assim como toda a nobreza da época, tiveram um casamento arranjado, com os interesses acima dos sentimentos. “Eles acabavam se respeitando. Era uma relação distante, mas civilizada”, descreve a historiadora Mary Del Priore, na biografia da Condessa do Barral. Ela descreve Dom Pedro II como um pai dedicado, que dava aulas de latim, astronomia e matemática às filhas — assim como mostra a novela. O imperador também era extremamente rígido na educação das meninas, especialmente de Isabel, sucessora do trono.
Ex-escravo como professor de árabe
Em um capítulo recente da novela, Samuel (Michel Gomes) é preso por um policial por falar árabe nas ruas do Rio de Janeiro. Dom Olu pede a ajuda de Dom Pedro II para libertá-lo e o imperador, indignado com a prisão, acaba por chamar Samuel para lhe dar aulas de árabe. “Os malês eram muçulmanos e alguns deles chegaram ao Brasil alfabetizados, então talvez a ideia dos roteiristas tenha vindo daí, mas é pouco crível que Dom Pedro tenha contratado um ex-escravo como professor”, aponta Alberto. Fernando Granato, autor do livro Bahia de Todos os Negros, complementa que os malês costumavam dar aulas de maneira clandestina, e muitos foram presos por essa razão. “Eles eram extremamente proibidos de fazer isso, e o império reprimia o quanto podia, então não é muito provável que Dom Pedro II tivesse um professor de árabe ex-escravo.”