Prevenir é preciso
Se Bolsonaro planeja mesmo anular a eleição, é essencial sabermos desde já qual é o plano
Por mais que o presidente da República ameace invalidar o resultado das eleições caso seja derrotado, vamos combinar: é tarefa de difícil execução. Mais fácil falar do que fazer. O mero vociferar não terá o poder de anular o processo cujo transcurso atrairá os olhos do mundo para o destino da democracia brasileira e no qual estarão envolvidos milhares de candidatos e milhões de eleitores.
Para levar a cabo tal projeto, Jair Bolsonaro precisaria de cúmplices na estrutura do Estado. Coisa de peso institucional, nada a ver com gritarias de internet ou arruaças. Teria de contar com uma Justiça (Eleitoral, mas não só) acovardada, um Legislativo suicida decidido a tornar inválidos os mandatos conquistados por governadores, deputados — estaduais, inclusive — e senadores, além de Forças Armadas dispostas a cumprir ordens de empastelamento geral.
Algum desses atores iria ou poderia se habilitar a cumprir semelhantes papéis? Não nos parece crível, dadas as reiteradas manifestações de repúdio aos avanços de Bolsonaro nessa seara por parte do Judiciário e do Congresso.
Resta aos militares encontrar um modo incisivo, sem se desviar do preceito da hierarquia, de demonstrar que a disciplina não inclui obediência a comandos fora da Constituição. Perderam essa oportunidade quando calaram ante a proposta do presidente de levá-los a fazer uma apuração paralela “em computador” fardado.
Talvez tenham considerado melhor não comprar uma briga inútil, tal o caráter absurdo da sugestão. Não cabe ao chefe do Executivo, muito menos está incluída entre suas atribuições de comandante das Forças Armadas decisões sobre o processo eleitoral estabelecido em lei pelo Congresso e cujo rito do início ao fim está sob escrutínio da Justiça.
“Se Bolsonaro planeja mesmo anular a eleição, é essencial sabermos desde já qual é o plano”
Qualquer atuação fora desses limites equivale a um golpe de consequências desastrosas em âmbito global. E, aqui, mais um obstáculo às ousadias presidenciais: tanto barulho Bolsonaro fez em torno desse assunto que atraiu a atenção do mundo para as eleições brasileiras que estarão sob estreita vigilância como nunca estiveram.
Além disso, as ameaças e contestações à confiabilidade das urnas eletrônicas foram tantas que acabaram suscitando a adoção de novas ferramentas de segurança e transparência. Contribuíram justamente para desmontar as suspeições de Bolsonaro.
Mesmo os questionamentos feitos pelos militares podem acabar servindo como uma espécie de manual sobre a lisura do sistema, tal a assertividade e o detalhamento das respostas dadas pelo Tribunal Superior Eleitoral. Não deixam margem a dúvidas.
A ausência de condições objetivas para o golpe significa que podemos dizer tranquilos que não vai ter golpe? Infelizmente, tranquilidade é matéria-prima que não podemos nos dar ao luxo de consumir. Como disse o poeta Robert Frost, há léguas a percorrer antes de dormir.
Urge, portanto, não desprezar as intenções de Jair Bolsonaro. Fundamental descobrir o que ele exatamente tem em mente, com quem poderia contar, saber qual é o plano para que o país possa se precaver e, se for mesmo o caso, reagir adequadamente e de maneira eficaz. Numa frase, prevenir é preciso. No sentido da necessidade e da exatidão.
Pode ser que as recentes conversas entre os chefes dos poderes Legislativo e Judiciário tenham abordado essa necessidade de detectar a trilha golpista do presidente, mas nada nesse sentido transpirou. Se por questão tática, o.k., mas, se por indiferença ao tema, conviria corrigir o rumo da prosa. Incluir nela os órgãos de controle e fiscalização, os políticos, os partidos e os pretendentes a candidatos em defesa não desse ou daquele nome, mas para construir união em favor da normalidade, de olho vivo e faro fino nos preparativos presidenciais para as vésperas e para o período pós-eleitoral. Tal engajamento requer abertura de espíritos, consciência de que a defesa da democracia não é propriedade de uma candidatura e atenção ao risco real.
O perigo pode até não ser o de uma ruptura clássica para instituir uma ditadura. Mas urge evitar também a normalização da anomalia, a fim de que não nos acostumemos ao quentinho da lama das relações institucionais deterioradas em estado de derretimento. Caminho certo na direção de irreversível morte morrida do estado de direito.
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Publicado em VEJA de 11 de maio de 2022, edição nº 2788