Manda quem pode
O poder de autorizar ou desautorizar governantes ao que quer que seja não é dos gritos de fiéis no meio da rua. É da Constituição e das instituições
Em matéria de manifestações de rua, não há dúvida de que os apoiadores do presidente Jair Bolsonaro marcam vantagem no placar do embate ora em curso no país. Entre outros motivos, porque aglomeração é com eles mesmos.
O 1º de Maio deste ano mostrou que são bons de mobilização dos seus, ainda mais quando não há o contraponto para que se estabeleça uma comparação. Como não vivemos tempos normais, não há como saber se um movimento de oposição ao governo reproduziria a maioria de insatisfeitos expressa nas pesquisas de opinião.
A impossibilidade de medição retira o confronto de posições da cena e reduz o efeito das manifestações. Daí o espaço relativamente discreto dado no noticiário aos atos daquele sábado, motivo de muita reclamação e acusações de parcialidade por parte da imprensa, que estaria com isso dando vazão à hostilidade contra o presidente da República. A queixa denota desconhecimento sobre a dimensão relativa de fatos.
A ausência de noção precisa a respeito do funcionamento das coisas em regimes de equilíbrio institucional, contra o qual se insurgem os devotos do presidente, evidenciou-se mais uma vez na escolha da pauta do, digamos, protesto, cuja palavra de ordem era “autorizamos”. Uma resposta à declaração de Bolsonaro dias antes de que aguardava apenas “um sinal” do povo para “tomar providências”.
O presidente quis mostrar-se disposto a atuar na consecução de um fim. Qual seria ele, não explicitou, mas seus apoiadores foram às ruas sem ambiguidades na exposição de alguns desses objetivos a ser alcançados: convocação das Forças Armadas para atuar contra as medidas restritivas no enfrentamento à pandemia, defesa da liberdade diante de ações autoritárias do Supremo Tribunal Federal, adoção do voto impresso e apoio ao presidente “até para a guerra” se necessário for.
Com esse cardápio, os manifestantes “autorizavam” o presidente a agir. Não levaram em conta, contudo, um dado da realidade democrática: o poder de autorizar ou desautorizar governantes ao que quer que seja não é dos gritos de fiéis no meio da rua. É da Constituição e das instituições.
Esse tipo de descolamento do mundo real patrocina batalhas de cunho ilusório que tendem a cair no vazio. Donde os meios de comunicação não podem lhes conferir a importância que gostariam sob pena de embarcar na fantasia transmitindo informações falsas à população, dando a impressão de que aquelas reivindicações são substantivas e exequíveis.
Em última instância, quem manda é a lei maior. Na democracia, obedece quem tem juízo suficiente para se ater aos ditames que regem a civilidade, determinam deveres, asseguram direitos e, sobretudo, impõem limites às tentativas de subversão dessa ordem.
“A vontade de devotos não se sobrepõe à Constituição, detentora do real poder de ‘autorizar’ atos de governantes”
Impressiona como o presidente e companhia insistem em esmurrar a ponta dessa faca ante os inúmeros exemplos de que essa é uma luta perdida. Simplesmente porque governantes não podem fazer o que bem entendem.
Quando o Supremo não deixa, o Congresso desaprova e as representações sociais repudiam, os locatários dos palácios (federais, estaduais e municipais) são obrigados a recuar. Ou, então, a se submeter aos danos decorrentes da insistência.
Está aí a CPI da Covid para demonstrar quanto são inúteis tentativas de se combater no campo oposto ao da força dos fatos. Depois do fracasso da ofensiva para impedir a instalação e dos esforços para atrapalhar o funcionamento da comissão, o governo agora se vê diante da fatura dos prejuízos acumulados desde o início da pandemia.
Os trabalhos mal começaram e o panorama das ações e omissões do Planalto já foi devidamente desenhado, cabendo à comissão daqui em diante detalhá-lo. Nos primeiros depoimentos ficou patente a completa falta de argumentos dos integrantes alinhados ao Planalto para cumprir a tarefa de mostrar que o governo, além de ter feito tudo certo, tampouco foi omisso na gestão da crise sanitária.
Praticamente vencido nesse ringue, o presidente voltou-se à presumida “autorização” dada por seus seguidores e anunciou decreto para impedir a execução de medidas restritivas tomadas por governantes locais e proclamou que a determinação será cumprida sem contestações.
Será, se não for ilegal. Caso fira a lei, será desautorizado pelo arcabouço do direito e cairá como tantas outras no vácuo das ameaças vãs.
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Publicado em VEJA de 12 de maio de 2021, edição nº 2737