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Delírio tropical

Bolsonaro tem vocação autoritária, sonha com golpes, é refém de uma expressiva confusão mental, mas não tem estratégia oculta nem é um esperto por natureza

Por Dora Kramer Atualizado em 4 jun 2024, 12h43 - Publicado em 24 set 2021, 06h00

A cada episódio do espetáculo de desmoralização da Presidência da República estrelado por Jair Bolsonaro há dois anos e oito meses, as pessoas se perguntam qual é a razão de o presidente insistir na marcha da própria insensatez.

Buscam-se variadas motivações: na vocação ao autoritarismo, numa presumida esperteza bem planejada, em algum déficit no recôndito do cérebro presidencial ou mesmo na sinalização para um golpe de Estado.

Isoladamente, nenhuma delas satisfaz por ausência de razoabilidade fática na execução dos propósitos quaisquer que sejam eles. O conjunto dessas características sem dúvida presentes nos atos e palavras do presidente, e que por isso justificam as suspeitas, dá notícia de uma personalidade dada a delírios.

O maior dos produtos da confusão mental de Bolsonaro é a ideia de que nessa toada chegará à reeleição. O que mais se ouve por aí no rol de tentativas de explicar a série de tiros no pé é que ele fala “para sua bolha”. Assim a maior parte das análises sobre o espantoso discurso na abertura da Assembleia-Geral da ONU qualificou a passagem do presidente por Nova York.

Não é novo o fato de presidentes brasileiros perderem a chance de falar ao mundo e preferirem se dirigir à província. José Sarney, Luiz Inácio da Silva e Dilma Rousseff já fizeram isso, mas nenhum deles atraiu críticas nem obteve o destaque internacional alcançado pelo atual presidente, até porque o simples envio de “recados” internos não interessam ao mundo.

Portanto, parece apressado e um tanto equivocado resumir a atuação desastrosa à intenção de fidelizar uma base eleitoral de convertidos, que, inclusive, diminui de tamanho a cada contagem dessa adesão nas pesquisas. Jair Bolsonaro teve o apoio de 55% do eleitorado em 2018. Hoje é aprovado por 22% dos consultados na última apuração do instituto Datafolha, cuja mostra revelou que apenas 11% estão com ele para o que der e vier.

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O que, então, poderia pensar o presidente em ganhar com a desastrosa passagem por NYC? E aqui a referência não é apenas ao discurso eivado de mentiras do começo ao fim, todas desmentidas interna e externamente, de A a Z, ponto a ponto. O desastre materializou-se na exibição do manual de estilo ao qual os ministros da Saúde e das Relações Exteriores acrescentaram alguns tópicos com suas chocantes linguagens de sinais.

“Pautado na sua confusão mental, Bolsonaro se perde ao insistir na marcha da própria insensatez”

Voltando ao ponto sobre o que pensa o presidente em ganhar com isso, chego à conclusão: ele não pensa. Tem vocação autoritária, sonha com golpes, é refém de uma expressiva confusão mental, mas não tem estratégia oculta nem é um esperto por natureza.

Bolsonaro simplesmente é assim, um homem inculto, grosseiro, deslumbrado e ao mesmo tempo assustado por ter sido guindado de repente da insignificância à total importância. Não sabe ser diferente e por isso se refugia em delírios, naquilo que se convencionou chamar de realidade paralela bolsonarista, um universo onde a lógica não tem vez.

Os habitantes desse planeta fora do mapa compartilham a euforia à deriva pela atenção recém-adquirida. Sentem-se finalmente relevantes, donos de voz ativa, credores do líder que os levou a essa condição. Decepcionam-se às vezes, mas se recuperam rápido criando razões para renovar a fidelidade, ainda que elas pouco ou nada tenham a ver com os fatos.

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Os acontecimentos decorrentes das manifestações do 7 de Setembro foram particularmente expressivos nesse aspecto. Logo após o presidente ter inventado no palanque de Brasília que no dia seguinte haveria uma reunião do Conselho da República, vários deles divulgaram vídeos em que apareciam felizes e aos prantos pela “decretação do estado de sítio”. Também comemoraram a “fuga” do ministro Alexandre de Moraes “para Taiwan”, onde estaria exilado e tão “humilhado” quanto seus pares do Supremo Tribunal Federal.

E a carta do dito pelo não dito escrita por Michel Temer? Um hábil recuo estratégico para obter do STF a garantia de que não haveria punições nem investigações envolvendo o presidente e seus apoiadores. E a fraude eleitoral, e o chip da vacina, e os vacinados transformados em jacarés, e a cura pela cloroquina, e os milhões que foram às ruas na “maior manifestação de toda a história”, e a ameaça comunista?

Tudo isso, e mais um pouco que a memória deixou de fora, pode servir para movimentar os delirantes, mas não é suficiente para ganhar uma eleição.

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 29 de setembro de 2021, edição nº 2757

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