Adeus à ilusão
A oposição tem de comer muito arroz com feijão para conseguir levar sua vontade às ruas de maneira contundente
O confronto das fotografias das manifestações de 7 e 12 de setembro não quer dizer grande coisa. Jair Bolsonaro não está com a vida ganha porque 150 000 pessoas foram à Avenida Paulista, nem os que querem ver o presidente pelas costas estão numa batalha perdida porque reuniram 6 000 manifestantes na mesma hora e local cinco dias depois.
No entanto, uma foto contra a outra nos diz que a oposição tem de comer muito arroz com feijão para conseguir levar sua vontade às ruas de maneira contundente. A unidade de propósitos que amarra os defensores de Bolsonaro uns aos outros, a capacidade de mobilizar recursos (públicos, inclusive), a existência de um rosto e de uma voz na figura do presidente a falar por eles são alguns dos fatores que faltam aos opositores.
Na seara oposicionista sobram vaidades, ressentimentos e ilusões à toa. Uma dessas miragens é a ideia de reeditar o clima da campanha das Diretas Já, que entre 1983 e 1984 levou multidões às ruas pelo direito de votar no presidente da República. Lá se vão quase quarenta anos e com eles uma distância monumental entre o país da época e o Brasil de hoje.
Se houvesse algo a incorporar daquele movimento seria o brado de “Não vamos nos dispersar” proclamado por Franco Montoro e adotado por Tancredo Neves logo após a derrota no Congresso da emenda que instituía eleições diretas, num chamamento à união nacional em prol da eleição de um civil no Colégio Eleitoral de 1985. A maioria dos partidos atendeu ao apelo, a sociedade aderiu e, assim, deu-se o ponto de inflexão no fim do regime militar com a eleição de Tancredo.
O cenário hoje é de dispersão. Não se trata de um defeito, mas de uma característica do tempo. Portanto, inexiste o pré-requisito para a repetição daquele tipo de movimento. Só isso já desaconselharia a fixação do olhar no retrovisor. Insistir nesse caminho dificulta, para não dizer impossibilita, a adoção de uma estratégia eficaz para a realização do objetivo comum de livrar o Brasil de mais quatro anos com Jair Bolsonaro na Presidência ou, numa hipótese remota, na interrupção do atual mandato.
“A ideia de reeditar o clima das Diretas Já, quase quarenta anos depois, é fantasiosa e, sobretudo, inexequível”
É preciso sonhar sonhos possíveis, lastreados em dados objetivos. As condições que estavam dadas em 83/84 não estão presentes na realidade atual. Naquela ocasião, a bandeira era única e já vinha sendo levantada em campanhas anteriores, como a da anistia. Além disso, as forças políticas não tinham vivido embates entre si. Havia um inimigo comum, o regime autoritário. Agora, pode-se argumentar, o arbítrio de novo se apresenta como risco a ser evitado, mas a situação é diferente.
Nessas quase quatro décadas houve disputas eleitorais, ocorreram dois processos de impeachment de presidentes, o PT enterrou sua mítica de reserva ética nos escândalos do mensalão e da Petrobras, as negociatas entre políticos e empresários não haviam sido expostas pela Operação Lava-Jato nem tinha sido introduzida no cenário a dinâmica do “nós contra eles” instituída por Luiz Inácio da Silva e incorporada por Jair Bolsonaro.
Tudo isso divide, mas são as dores da democracia. Suportáveis e até desejáveis ante a alternativa do sufocamento das ditaduras. Em situações difíceis, contudo, as divergências precisam ser politicamente conduzidas e adaptadas à nova era, em que não estão mais em cena aquelas grandes figuras credenciadas ao comando de mobilização da sociedade por atributos de habilidade, experiência, espírito público, conduta moral e capacidade de liderança.
A composição das divergências, a tolerância e a contenção dos atos ao limite da legalidade movimentam as engrenagens institucionais. O isolamento e o apego a crenças paralisam. Quem ironiza “a turma das instituições estão funcionando”, achando que com isso enxerga o que a maioria não vê, contribui para minar a confiança nas balizas democráticas a ser defendidas. A semeadura do descrédito quem faz é o adversário a ser combatido.
Fala-se tanto em inclusão social, mas não se vê esforço na superação do sectarismo exacerbado ao qual se dá o nome de polarização. Embora seja natural que a esquerda não queira se associar a atos onde há um boneco inflável de Lula vestido de presidiário e que o centro e a direita civilizada resistam a pôr azeitona na empada do PT, uma solução há de haver.
Com um pouco de inspiração, muita transpiração e disposição ao desapego, é possível chegar lá.
Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA
Publicado em VEJA de 22 de setembro de 2021, edição nº 2756