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Diário de um Escritor

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Um olhar para o cotidiano histórico e cultural da Rússia - mas muito além do futebol
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Se queres paz, prepara-te para a guerra?

Uma conversa com um capitão reformado do Exército Vermelho

Por Flávio Ricardo Vassoler
19 jun 2018, 08h05

Antes de me dirigir ao Museu da Guerra Fria (também conhecido como Bunker 42), que fica perto da estação Taganskaya do metrô, tento escolher, a esmo, um restaurante para almoçar. Serve esse aqui mesmo, estilo fast food, com batatas recheadas: Krochka Kartochka.

Simpática, a atendente sorri com bonomia ao lidar com o meu russo macarrônico e vai me ajudando a decifrar os 1001 tipos de batatas disponíveis. É a deixa para que, de uma mesa próxima ao caixa, um senhor atarracado e aparentemente boa praça pergunte de onde eu venho – a resposta faz com que o moscovita Valeri Viatcheslavovitch Motchalovski discorra brevemente sobre Pelé, Garrincha e a decepção que sentiu quando o Brasil não levou a Copa de 82 (ele se lembra bem do golaço de Sócrates contra a União Soviética, na estreia do torneio).

Tudo parecia se encaminhar para uma conversa futebolística, quando decidi perguntar sobre a profissão do senhor Motchalovski.

– Sou capitão reformado do Exército Vermelho.

Quando ele me diz que esteve na Guerra do Afeganistão, último vespeiro em que, ao longo da década de 80, os soviéticos se meteram, começo a disparar perguntas. Com a fleuma necessária de um estrategista militar a estudar a topografia irrequieta e de sobrancelhas arqueadas da minha curiosidade, Motchalovski logo decifra minha pulsão narrativa.

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– Calma, nós vamos chegar lá. Mas, antes de mais nada, eu quero que você entenda que, para a nossa sociedade, as memórias de guerra não trazem apenas as cicatrizes da mutilação e do trauma. Amizades indestrutíveis como o aço foram forjadas com a solidariedade das trincheiras, e, se quiser discernir acordes profundos da alma russa, você precisará entender a aura (eu diria até – “a mística”) do martírio de guerra. Você já ouviu falar do soldado de infantaria Alexander Matveievitch Matrosov?

Minha negação faz o outrora oficial do Exército Vermelho aprumar o ímpeto narrativo passando a mão reiteradamente pelo cocuruto, como se Motchalovski estivesse acendendo o pavio da memória.

– Bom, eu não sei quando a humanidade começou a elevar seus mártires à condição de heróis – e é duríssimo pensar que o preço da suma bondade e da abnegação seja o cadafalso. Mas o fato é que, sem Matrosov – e para muito além da propaganda soviética –, nós não teríamos conseguido retomar o vilarejo de Tchernuchki, que fica em Pskov, cidade 70 quilômetros a leste da fronteira com a Estônia. Vidas preciosas teriam sido abatidas como moscas se atos como o de Matrosov não revelassem por que chamamos a Segunda Guerra Mundial de Grande Guerra Patriótica. E o que fez Matrosov? Veja só: os alemães, é preciso admitir, lutavam de forma encarniçada. Uma posição guarnecida por metralhadora impedia o avanço dos nossos homens – enquanto isso, o vilarejo ia ardendo em chamas. Então, diante do coágulo que implicaria o extermínio dos habitantes, o jovem Matrosov, de 19 anos, decidiu correr em direção à metralhadora, já sem munição, para atrair os disparos contra o próprio peito – a carcaça de Matrosov permitiu que os soldados se ramificassem e conseguissem contornar a posição guarnecida, de modo a render o artilheiro alemão. Matrosov havia crescido em orfanatos – mas, ainda assim, ele pôde sentir a dor e o desespero das mães de Tchernuchki. E mais uma vez eu digo: eu não sei quando a humanidade começou a elevar seus mártires à condição de heróis – e é duríssimo pensar que o preço da suma bondade e da abnegação seja o cadafalso. Então, o que há na guerra que faz com que esse egoísmo tacanho do cotidiano – esse senso de que o meu deve ser arrancado, justamente, contra o que é seu – seja superado pela solidariedade de quem, a qualquer momento, pode ser abatido? O que há na guerra que faz com que a minha vida – que, ali, é tão frágil quanto uma brisa ou uma folha de outono – se conecte, umbilicalmente, à sobrevida dos demais? Isso que chamamos de fraternidade, meu caro, eu só conheci na guerra. Isso que chamamos de altruísmo, meu caro, eu só conheci na guerra. Na paz, você simplesmente toma o pão para si – os demais que se arranjem com a fartura que ninguém quer dividir. Na escassez da guerra, você reparte o pão antes mesmo de oferece-lo. E, ao dizer isso, eu não quero fazer uma ode à guerra – quem poderia se esquecer dos assassinatos e das pilhagens, dos estupros e dos escombros? Eu só quero que você entenda que, a bem dizer, isso que chamamos de nobreza profunda, meu caro, eu só conheci na guerra.

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Motchalovski faz uma pausa. Seus olhos bem azuis e estreitos, supostamente voltados para mim, na verdade miram um velho adágio:

– “Se queres paz, prepara-te para a guerra” – assim diziam os romanos, uma das civilizações mais belicosas de que temos notícias. E, diante dessa máxima, nós só conseguimos pensar na dificuldade dos homens para a manutenção da paz. Só que eu estou sugerindo, meu caro, que há um tipo de paz, em meio à guerra, que o cotidiano jamais nos revela. É a paz do eu que, num batalhão, sente que todas e cada uma de suas ações estão radicalmente irmanadas a todas e cada uma das ações dos demais. Se queres guerra, volta-te para o egoísmo da paz cotidiana, mas, se queres paz – a paz como a mão estendida para o derradeiro trago de água do cantil (ele vai morrer, e você, o sobrevivente, é quem precisa de água, mas você, ainda assim, estende o cantil para o moribundo); a paz como a mão que, em vão, tenta estancar a hemorragia (ele vai morrer, e você, o sobrevivente, supostamente perde tempo em velar o moribundo, mas, ainda assim, a cercania da morte intensifica o respeito pela vida); se queres paz, então, prepara-te para a guerra.

Motchalovski faz uma nova pausa – agora ele escreve, em cirílico, o nome do Major Andrei Maiorov em meu caderno de anotações. É hora de aterrissarmos no Afeganistão.

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– O Major Maiorov esteve comigo na fronteira soviética com o Afeganistão. Nossa amizade de mais de 30 anos começou por lá. Foi Maiorov quem me disse – como que a me preparar para um rito de iniciação – que, na guerra, a morte se confunde com o cansaço (alguém simplesmente tomba do seu lado, como se tivesse pegado no sono); na guerra, a morte redime (tente imaginar a dor de uma amputação, meu caro, e você sentirá, contra cada fímbria do corpo, a tangibilidade da expressão que clama “pelo amor de Deus, Pai, me leva daqui!”). Na Guerra do Afeganistão, nós conhecemos a suma valentia do mujahidin, o soldado para quem a causa sagrada da jihad é o próprio sentido da vida como um corpo que pode (e deve!) perecer. E o arquétipo do destemor mujahidin era encarnado pelo comandante afegão Ahmed Chah Massud, um homem que, em seus soldados (ou melhor, em seus seguidores), só fazia provocar a devoção. Pois bem: era muito comum que, nas regiões de fronteira, soldados afegãos e soviéticos fossem sequestrados como forma de estabelecer moedas de troca para o resgate de reféns. Nós chegávamos a ceder até 50 prisioneiros afegãos por um único oficial soviético, e chegou o momento em que Maiorov teve que negociar o resgate de um capitão do nosso exército diretamente com Massud. O líder afegão se sentia ultrajado pelo fato de que dezenas de vidas de seus irmãos de jihad fossem equiparadas a um único uniforme soviético.

Combatentes afegãos
Combatentes afegãos posam para foto em meio à guerra contra a União Soviética (José Nicolas/Corbis/Getty Images)

Então, para negociar os termos daquela troca de prisioneiros, Massud impôs uma condição radicalmente temerária: o Major Maiorov teria que ir sozinho e desarmado ao encontro de Massud e seus homens, cuja brutalidade era conhecida de quem quer que tivesse pisado naquele deserto de areia, cavernas e montanhas que é o Afeganistão. Qualquer um teria refugado; qualquer um, independentemente da patente e da desonra, teria apelado ao sentimento de compaixão da tropa. Mas meu velho amigo Maiorov sentiu que, a despeito do medo, era preciso ser solidário com o oficial soviético cuja decapitação era iminente – o exemplo, para um batalhão, é tudo, absolutamente tudo, sobretudo quando vem de cima, isto é, sobretudo quando vem de quem tem muito mais (na verdade, tudo) a perder. Maiorov não quis sequer seguir o conselho de encontrar Massud com uma granada no bolso – honrado como ele só, Maiorov pressentiu que o líder afegão só o respeitaria (e o pouparia) se ele se mostrasse à altura da emboscada. E imagine o espanto dos soldados de Massud, meu caro, quando Maiorov surgiu sozinho naquele descampado – o líder afegão e os seus fiéis viram, desde o primeiro momento, que estavam diante de um igual em termos de honra e fervor. Pois você quer saber, então, o que aconteceu? Não só Maiorov resgatou o nosso capitão da decapitação, meu caro, como Massud o cumprimentou com franqueza e simpatia e lhe entregou um dos punhais mais antigos de seu clã. “Quando eu tiver que tombar no campo de batalha, Major Maiorov, permita Alá que o senhor, homem de palavra e bravura, me transpasse com o punhal de meus longínquos ancestrais. Assim eu voltarei para o local de onde eu vim. Insha’Allah!”

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Flávio Ricardo Vassoler, escritor e professor, é doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (EUA). É autor das obras O evangelho segundo Talião (nVersos, 2013), Tiro de misericórdia (nVersos, 2014) e Dostoiévski e a dialética: Fetichismo da forma, utopia como conteúdo (Hedra, 2018), além de ter organizado o livro de ensaios Fiódor Dostoiévski e Ingmar Bergman: O niilismo da modernidade (Intermeios, 2012) e, ao lado de Alexandre Rosa e Ieda Lebensztayn, o livro Pai contra mãe e outros contos (Hedra, 2018), de Machado de Assis. Página na internet: Portal Heráclito, https://www.portalheraclito.com.br.

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