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Diário de um Escritor

Por Flávio Ricardo Vassoler Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO
Um olhar para o cotidiano histórico e cultural da Rússia - mas muito além do futebol
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Se Moscou era o cérebro soviético, Stalingrado era o coração (Parte I)

A cidade que seria dizimada pelos nazistas acabou se transformando no marco em que o curso da Segunda Guerra se viu revertido

Por Flávio Ricardo Vassoler
Atualizado em 30 jul 2020, 20h24 - Publicado em 3 jul 2018, 07h27

Enquanto observo as estepes infindas que o trem rumo a Stalingrado vai singrando, me lembro de uma cena do filme Stalingrado (1993), dirigido pelo alemão Joseph Vilsmaier (1939 – ).

Durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e já em meio à invasão da União Soviética pelo III Reich através da Operação Barbarossa, que teve início no dia 22 de junho de 1941, soldados alemães a bordo de um trem que se dirige a Stalingrado observam as estepes por horas a fio. Eles veem, ao longe, alguns camponeses arando a terra e a fumaça malemolente sendo expelida pela chaminé de um casebre – todos imaginam que, ao fim da guerra (que, sem dúvida, será vencida pelos alemães), a soldadela receberá seu quinhão de terra para que o Lebensraum (o Espaço Vital) possa colonizar e civilizar a Rússia até então entregue à barbárie, conforme a propaganda de Joseph Goebbels (1897-1945) lhes ensinara.

A grama da estepe é rala e falha – ela oscila entre o verde, o amarelo e o marrom, sempre ao sabor das queimaduras que o sol inclemente (o verão russo cruza a barreira dos 40ºC) e a neve lhe impõem; ao baixar a temperatura a -40ºC, o general inverno esgarça a amplitude térmica em 80 graus.

Quando imagino a suma beleza da estepe toda coberta de neve, um calafrio de desespero me transpassa: sem quaisquer barreiras para o avanço da cavalaria do vento, os -40ºC podem descer a sensações térmicas intangíveis para qualquer ser vivo. (Suspeito que a ideia original para o zero absoluto – temperatura que estancaria o movimento das moléculas em -273,15ºC – tenha vindo de algum rincão à beira do Volga ou, com boa dose de probabilidade, da mais recôndita estepe siberiana.)

Logo à frente da estação de trem de Stalingrado, deparo com uma réplica da histórica Fonte Barmaley, cujo lirismo despontava como uma barricada em meio às ruínas fumegantes da guerra – é como se a beleza pudesse cicatrizar o mundo.

Diário de um escritor na Rússia
Réplica da Fonte Barmaley, em Volgogrado, à frente da estação de trem (Flávio Ricardo Vassoler/VEJA.com)

Inspirada no poema Barmaley, que fora escrito, em 1925, por Kornei Chukovski (1882-1969), um dos mais populares compositores de poesias infantis da Rússia, a fonte traz em seu centro um enorme (e temerário) jacaré africano, ao redor do qual seis crianças sumamente despreocupadas dançam ao ritmo de uma cantiga que nossas avós entoavam para nos fazer dormir: “Ciranda, cirandinha,/ Vamos todos cirandar/ Vamos dar a meia-volta/ Volta e meia vamos dar.// O anel que tu me destes/ Era vidro e se quebrou/ O amor que tu me tinhas/ Era pouco e se acabou.// Por isso, dona Rosa,/ Entre dentro desta roda/

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Diga um verso bem bonito/ Diga adeus e vá se embora”.

A saga do sniper soviético Vassili Zaitsev (1915-1991) começa na Fonte Barmaley, segundo o francês Jean-Jacques Annaud (1943 – ), diretor do filme Círculo de fogo (2002). Sob a ciranda das criancinhas e o soslaio do jacaré, Zaitsev vai abatendo, um a um, os 242 soldados nazistas com seu fuzil de precisão telescópica. Dentro em breve, voltarei a falar da bravura de Zaitsev – por ora, vamos diretamente ao Museu-Panorama da Batalha de Stalingrado.

Os soviéticos (desde 1991, após o colapso da URSS, os russos) mantêm um edifício retangular de 4 andares, todo em ruínas, ao lado da entrada do museu. A fachada do prédio quase inexiste, como se a construção tivesse sido escalpelada pelos bombardeios e pelas chamas. Só se veem tijolos enegrecidos e chamuscados, restos triangulares das paredes que um dia soergueram o teto, fios de aço vergados como se fossem maleáveis novelos de lã. Quem vê a Volgogrado de hoje, com os canteiros da Avenida Lênin tomados por árvores frondosas, não sente a memória física dos escombros. O edifício em ruínas, então, desponta como uma admoestação – a bem dizer, um prenúncio, já que, ao longo da história humana, períodos de paz (ou melhor, de trégua) despontam como períodos entreguerras.

Os buracos das janelas – verdadeiros olhos vazios de caveiras – testemunham uma segunda réplica da Fonte Barmaley, agora em tamanho original, à frente do edifício: é como se eu estivesse recebendo, de fato, um segundo chamado: é hora de Volgogrado, a cidade que margeia o colossal rio Volga, dar lugar a Stalingrado, a cidade-batalha que começou a reverter o curso da Segunda Guerra Mundial a favor do Exército Vermelho; a cidade-batalha que representa a primeira (e clamorosa) derrota dos piratas nazistas.

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Prédio em ruínas e réplica da Fonte Barmaley, em tamanho original, ao lado do Museu-Panorama da Batalha de Stalingrado, em Volgogrado (Flávio Ricardo Vassoler/VEJA.com)

Ao largo da plataforma que dá acesso ao Museu-Panorama da Batalha de Stalingrado, deparo com um caminhão, sobre cuja carroceria há um lançador de foguetes, e um pequeno tanque de guerra. As inscrições Ha Берлин (Na Berlim, Rumo a Berlim) e За Родину (Za Rodinu, Pela Pátria) em suas latarias dão o tom de que a soldadela já sabia que, uma vez contida a metástase hitlerista em Stalingrado, o Exército Vermelho só descansaria para amarrar os cavalos de seus tanques blindados junto ao Portal de Brandemburgo, no coração da capital alemã.

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“Na Berlim” – Rumo à Berlim – diz a inscrição sobre a porta do caminhão que porta um lança-foguetes (Flávio Ricardo Vassoler/VEJA.com)

Logo me vem à memória o livro Um escritor na guerra: Vassili Grossman com o Exército Vermelho, 1941-1945. O judeu soviético Vassili Grossman acompanhou o Exército Vermelho de Stalingrado a Berlim e pôde ver os rastros da vitória que os soldados iam legando com suas pichações. Duas delas, radicalmente emblemáticas, talvez tenham sido feitas pelo mesmo soldado. Em Stalingrado: “Vejo você em Berlim, alemão comedor de chucrute. Deutschland kaputt! (A Alemanha já era!)”. Em Berlim, nas paredes do Reichstag, o Parlamento: “Lá em Stalingrado, eu disse que chegaria a Berlim. Quem mandou você invadir a minha pátria, alemão comedor de chucrute? E agora, hem? Deutschland kaputt oder nicht? (A Alemanha já era ou não?)”.

À entrada do museu, vejo um dos mais famosos cartazes soviéticos criados logo no início da Grande Guerra Patriótica: uma senhora com o rosto sério e vincado, toda vestida de vermelho e secundada por um sem-número de baionetas, apresenta um comunicado de guerra com a mão direita e, estendendo o braço esquerdo ao céu, sentencia: Родина-мать зовёт! (Rodina-mat’ zoviot!, A pátria-mãe está convocando!). Todos os homens, de 17 a 60 anos, deviam se apresentar às Forças Armadas para a defesa incondicional da URSS contra a horda nazista que avançava como um tufão pelo território soviético.

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“Rodina-Mat’ zoviot” – A Pátria-Mãe está convocando – diz o cartaz soviético (Flávio Ricardo Vassoler/VEJA.com)

A princípio, a cidade de Stalingrado não era vista pelos alemães como o objetivo principal. Emitida pelo Alto-Comando da Wehrmacht, as Forças Armadas do III Reich, no dia 05 de abril de 1942, a Diretiva 41 determinava que as tropas nazistas deviam (i) destruir a região industrial de Voronej, que fica no centro da Rússia europeia, (ii) cruzar o Volga fazendo terra arrasada de Stalingrado (em questão de uma semana, se tanto) e (iii) chegar aos riquíssimos campos de petróleo do Cáucaso.

Iniciada em 17 de julho de 1942, a batalha em Stalingrado não deveria ultrapassar o dia 25 do mesmo mês.

Ocorre que a cidade a ser dizimada por mais uma Blitzkrieg nazista acabou se transformando no marco em que o curso da Segunda Guerra se viu revertido.

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Dos 8 dias inicialmente projetados pelos militares alemães, a batalha em Stalingrado se estendeu por 200 dias e noites em meio a um território que cobriu mais de 100.000 km². Mais de 2.000.000 de homens, algo em torno de 2.000 tanques e aviões e 26.000 armas e morteiros foram exauridos na batalha.

Quando as tropas de Hitler começaram a encontrar encarniçada resistência por parte dos soviéticos, o prestigioso 6º Exército, sob o comando do Generalfeldmarschall (Marechal-de-campo) Friedrich Wilhelm Ernst Paulus (1890-1957), foi enviado para dar conta do recado. Sucessivos erros de estratégia – também decorrentes das desastrosas intervenções de Hitler nos assuntos militares – implicaram perdas terríveis e incontornáveis para as tropas de Paulus, que se viram imobilizadas, cercadas e, ao fim e ao cabo, rendidas pelo Exército Vermelho.

Paulus se tornou, a princípio, prisioneiro de guerra na União Soviética. Posteriormente, entre 1943 e 45, o oficial se juntou ao Comitê Nacional por uma Alemanha Livre, formado na URSS para se opor aos nazistas.

No dia 11 de fevereiro de 1946, em meio aos julgamentos de Nuremberg, o promotor soviético Roman Rudenko (1907-1981) arrolou Friedrich Paulus como uma das principais testemunhas de acusação em relação à invasão da URSS pelos nazistas e às atrocidades cometidas durante a Operação Barbarossa.

Após os julgamentos, Friedrich Paulus foi liberado e se radicou na Alemanha Oriental. Coincidentemente – há quem diga: sintomaticamente –, o marechal-de-campo desenvolveu uma doença motora que paralisou o lado direito de seu corpo, como que a mimetizar a suma paralisia de suas tropas entre as ruínas de Stalingrado.

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E eis que a imagem de dois soldados soviéticos famintos me faz estacar. Trajando uniformes imundos, ambos devoram os nacos de carne que lhes caíram nas mãos – verdadeiros raios em céu azul, dada a agrura para o abastecimento de Stalingrado em meio à guerra. À esquerda da foto e mais próximo do plano do espectador, um soldado com a têmpora direita raspada e o quepe enviesado morde uma coxa de não sei que animal com a fome e a fúria de quem a arrancou de uma fera recém-abatida.

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Soldados soviéticos famintos em meio à Batalha de Stalingrado – Foto a partir da exposição do Museu-Panorama da Batalha de Stalingrado (Flávio Ricardo Vassoler/VEJA.com)

Logo ao lado, vejo a foto de um bebê eslavo (uma menina) sentada em um jardim. Próxima do plano do espectador, a menininha mira a câmera com a curiosidade de quem vai desbravando e projetando o mundo com a avidez do olhar. [Tal olhar de esfinge de fraldas me remete, no ato, a uma colocação sumamente lírica do escritor Liev Tolstói (1828-1910), que, quando criança, tinha medo de virar a cabeça bruscamente para trás: “E se o mundo ainda não estiver pronto antes da chegada do meu olhar?”]

A foto da bebezinha eslava seria muito singela, não fossem dois detalhes contumazes de Stalingrado: quando olho a foto bem de perto, o pão que a bebê segura com mãozinhas pequeninas e amorfas (como se feitas de argila) na verdade se revela uma pequena ogiva (uma bomba!) ali dispersa pelo jardim entre o cavalicoque de madeira e a boneca de pano. Ao fundo, o casebre do vizinho, à frente do qual se posta uma cerca de madeira, arde em chamas – quem se aproxima bem da foto (no museu, o som dos rasantes dos aviões e dos assovios das ogivas é onipresente) é capaz de ouvir o crepitar do fogo.

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Um bebê em meio à guerra – Foto a partir da exposição do Museu-Panorama da Batalha de Stalingrado (Flávio Ricardo Vassoler/VEJA.com)

Como que a montar um quebra-cabeça mórbido – na guerra, as ruínas e os corpos cubistas se sobrepõem a esmo –, a bebezinha que brinca com um torpedo dá lugar à Приказ (Prikaz, Ordem) n.º 227, emitida pelo Alto-Comando das Forças Armadas Soviéticas no dia 28 de julho de 1942.

Retroceder, nunca; render-se, jamais: diante das derrotas e das baixas severíssimas que os alemães impuseram aos soviéticos quando do início da batalha, a Ordem nº. 227 estabelecia radical disciplina para a soldadela. Sem ordem estrita dos comandantes, ninguém poderia dar sequer um passo para trás. Acometidos pelo pânico e pelo derrotismo, os covardes, desertores e alarmistas deviam ser abatidos como se, desde sempre, tivessem feito parte das hostes alemãs invasoras.

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Diante da Ordem n.º 227, restavam aos soldados duas opções: matar ou morrer – morrer pelas mãos inimigas ou morrer pelo fratricídio imposto pela Pátria-Mãe. [Quando, em seu discurso inflamado de 07 de novembro de 1941, dia do 24º aniversário da Revolução de 1917, Stálin sentenciou que, à diferença da Alemanha, a União Soviética contava com “reservas humanas inesgotáveis”, o ditador já contabilizava, como um eficiente gerente de recursos humanos, a gordura e a carne humanas que poderiam ser estocadas e queimadas para salvar o Estado soviético do naufrágio. (Tão odiosa quanto banalizada, a expressão “recursos humanos” já não nos escandaliza em meio à sociopatologia de nossa vida cotidiana.)]

Entro, então, no cenário de radical violência das batalhas de rua – batalhas violentas, tresloucadas e impetuosas, já que Stalingrado, levando em seu ventre o nome de Stálin, não podia cair em mãos inimigas. Como os nazistas logo descobriram, se Moscou era o cérebro da União Soviética, Stalingrado era o coração da Pátria-Mãe.

A batalha travada rua a rua, esquina a esquina, pilastra a pilastra, ruína a ruína, homem a homem me leva ao sobretudo cinza do Major Vassili Glazkov, com suas golas vermelhas em cujas pontas cintilam estrelas douradas. Nascido em 1901, o oficial de 41 anos acabou sendo alvejado duas vezes pela artilharia alemã, ao que, prontamente, seus subordinados o puseram em uma viatura para levá-lo a um (arremedo de) hospital.

Ciente de que um oficial (uma vital moeda de troca) estava sendo evacuado do campo de batalha, a inteligência nazista comunica os oficiais, que, prontamente, ordenam que a soldadela centre seus ataques contra o veículo para capturar o Major Glazkov (supostamente) com vida.

Através de uma campânula de vidro retangular, começo a contar, uma a uma, as 168 perfurações (os tamanhos variados atestam projéteis dos mais diversos calibres) que transpassam o sobretudo de Glazkov. (A náusea me toma à altura do 37º orifício – começo a torcer para que, quando da segunda bala, Glazkov já tenha sido agraciado com uma morte imediata e redentora.)

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Sobretudo do Major Vassili Glazkov (Flávio Ricardo Vassoler/VEJA.com)

Súbito, deparo com a história da Дом Павлова (Dom Pavlova, Casa de Pavlov), em referência aos 55 homens, de 10 nacionalidades distintas das repúblicas soviéticas, que, comandados pelo Sargento Iakov Pavlov (1917-1981), resistiram heroica e encarniçadamente a sucessivas investidas nazistas contra o prédio de quatro andares, situado à margem leste do Volga, que se transformou em uma verdadeira fortaleza.

Durante 58 dias, os homens de Pavlov, parcamente supridos com água, comida e guarnições contra o frio, conseguiram impedir que os soldados alemães, que investiam contra o prédio dia e noite, invadissem o edifício-trincheira.

Homem-barricada fundamental de Stalingrado – Nazistas não passarão! –, o Sargento Iakov Pavlov recebeu, em nome de seus soldados, a honraria máxima da URSS, a medalha de Herói da União Soviética.

Em termos de psicologia da guerra – isto é, em termos da aura espessa e tangível que se espraia pelo campo de batalha com os altos e baixos do moral da tropa –, a Casa de Pavlov parece encarnar à perfeição uma observação sobre a arte da guerra feita pelo argentino Ernesto Guevara de la Serna (1928-1967), guerrilheiro que teve papel fundamental na vitória do Movimento 26 de Julho, comandado por Fidel Castro (1926-2016), em meio à Revolução Cubana (1956-59).

Em seu livro A Guerra de Guerrilhas (1961), Che Guevara decanta suas experiências de combatente revolucionário e discorre sobre o contexto de batalhas em que, a despeito da assimetria de forças entre as tropas adversárias, uma (in)certa variável x assume protagonismo e alça os soldados para além de si mesmos. Tal variável x, discorre Guevara, pode se relacionar à bravura – a bem dizer, à fé – dos comandantes que se dissemina entre a soldadela (ou, inversamente, estaríamos diante do credo dos soldados que contagia o comando) e ao sentido de suma justiça e emancipação da luta. É assim que, diante de seus olhos de guerrilheiro vitorioso da Sierra Maestra até Havana, Guevara acompanhou combatentes menos preparados levando guarnições numerosas e armadas até os dentes à rendição incondicional.

Estudioso (e participante) da guerra, Guevara talvez tivesse os 55 homens da Casa de Pavlov em mente quando tateou pelo caráter indômito da variável x.

Vale frisar que o governo soviético ordenou que a Casa de Pavlov, situada à rua Sovietskaia, n.º 39, fosse reconstruída, em parte, segundo seus moldes originais. [O Museu-Panorama da Batalha de Stalingrado me faz ver que o edifício em ruínas ao lado de sua entrada pode ser uma réplica (e uma retomada) da Casa de Pavlov (e de sua aura).]

A reconstrução do edifício lendário durou 58 dias – precisamente o mesmo número de dias de que os combatentes comandados pelo Sargento Iakov Pavlov lançaram mão para impedir que o prédio fosse dominado pelos nazistas.

E eis que, próxima da história da Casa de Pavlov que ganha ares mitológicos, volto a me envolver com a saga do escorpião Vassili Zaitsev, o lendário sniper cercado pelo Círculo de fogo – voltamos, então, ao filme do diretor francês Jean-Jacques Annaud ao qual fiz referência no início de nossa caminhada pelas ruínas de Stalingrado.

Quando encalacrado entre as chamas, o escorpião prefere enterrar seu ferrão venenoso contra o próprio corpo – os autores agônicos da literatura russa talvez dissessem que o escorpião prefere fazer o elogio de seu próprio naufrágio – a ser um espectador resignado de sua incineração.

Ocorre que o ex-caçador siberiano/sniper Vassili Zaitsev, quando cercado e acossado pelo círculo de fogo nazista, direciona o veneno de seus disparos certeiros contra os capacetes de 242 combatentes alemães. Seu ferrão tem nome e sobrenome – fuzil Mosin-Nagant, modelo M91/30, calibre 7,62 x 54 mm – e precisão telescópica.

Diário de um escritor na Rússia
Fuzil do lendário sniper soviético Vassili Zaitsev (Flávio Ricardo Vassoler/VEJA.com)

Quando uma bomba explode, apenas os nacos de dedos, braços e pernas denunciam que, pelas crateras côncavas e fumegantes, já transitaram seres humanos que queriam sobreviver à guerra. O sniper, no entanto, vê a barba por fazer de sua vítima através da mira telescópica de seu fuzil – ele entrevê a aliança dourada do soldado no indicador direito (ele discerne a saudade da esposa e da filhinha recém-nascida), ele descobre os olhos esbugalhados do capitão alemão que, escondido de seus subordinados, treme de pavor e roga a Deus que o tire dali, ele lê os lábios dos companheiros de trincheira e de infortúnio que, a despeito da morte certa em Stalingrado, ainda fazem planos para depois da guerra. O sniper não abate abstrações, o sniper desconhece baixas – o sniper mata seres humanos com rostos agônicos como o do homem que grita no quadro do norueguês Edvard Munch (1863-1944).

Num amálgama de heroísmo (e, quiçá, de culpa subterrânea), reza a lenda que o sniper Vassili Zaitsev, que acompanhou o Exército Vermelho até Berlim, pediu que seu corpo fosse enterrado em uma colina de Stalingrado, para que sua lápide se transformasse em uma sentinela eterna da planície que seus tiros tanto guarneceram. (O sniper, então, já não se separaria do espectro de seus mortos.)

Ora, quem nunca esteve na guerra – até o presente momento, a maioria de nós – só pode imaginar que o maior desejo de quem já desceu ao inferno é nunca mais retornar ao campo de batalha. Como o desejo póstumo de Vassili Zaitsev pode atestar, entretanto, esse não parece ser o caso.

Como entender o ímpeto de bravura que sente saudade de seus duelos com a morte e que, a bem dizer, deles não consegue se despedir?

Talvez o poeta chileno Pablo Neruda (1904-1973) nos possa dar uma pista a partir de um fragmento de sua autobiografia Confesso que vivi, publicada, postumamente, em 1974.

Eis que Neruda nos narra um dos encontros que teve com o Che Guevara.

Poeta e homem de paz, Neruda nunca pôde entender o guerrilheiro. O chileno não estava propriamente de acordo com a teoria e a prática da guerra de guerrilhas e do foco revolucionário que Guevara defendia – a noção de que, para o inferno dos Estados Unidos, era preciso criar um, dois, três Vietnãs. Neruda considerava tudo aquilo demasiado e insano. Mas o poeta não conseguia deixar de ver em Che Guevara um Quixote argentino.

Eis que, numa tarde a reboque de seu mate, Che conta a Neruda que, “uma vez na guerra, poeta, dela não mais conseguimos nos desvencilhar. Nela, somos a superação de nós mesmos a cada momento – não é possível ser menos quando as rajadas só fazem crispar o corpo, quando os guerrilheiros dependem um do outro, de forma perene, para poderem acreditar e sobreviver. Mas, compañero Neruda, quero lhe pedir uma coisa”.

Neruda aquiesce com prontidão e curiosidade.

Che Guevara então saca de sua mochila uma antologia de Neruda com poemas de amor e odes às mulheres e pede ao poeta:

− Amigo Neruda, escreva aqui a tua dedicatória, quero ler o teu cancioneiro a cada fim de batalha, quando os fuzis relegados e o crepitar das fogueiras oferecerem uma trégua aos peregrinos da revolução.

É como se, resguardando a planície de Stalingrado a partir de sua colina, o túmulo/sentinela de Vassili Zaitsev sentenciasse:

− Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás.

Sobre o autor

Flávio Ricardo Vassoler, escritor e professor, é doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (EUA). É autor das obras O evangelho segundo Talião (nVersos, 2013), Tiro de misericórdia (nVersos, 2014) e Dostoiévski e a dialética: Fetichismo da forma, utopia como conteúdo (Hedra, 2018), além de ter organizado o livro de ensaios Fiódor Dostoiévski e Ingmar Bergman: O niilismo da modernidade (Intermeios, 2012) e, ao lado de Alexandre Rosa e Ieda Lebensztayn, o livro Pai contra mãe e outros contos (Hedra, 2018), de Machado de Assis. Página na internet: Portal Heráclito, https://www.portalheraclito.com.br.

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