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Diário de um Escritor

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Um olhar para o cotidiano histórico e cultural da Rússia - mas muito além do futebol
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Entre a cruz e a espada: A Rússia sob o punho de Vladimir Putin

Trechos da conversa com um putinista ferrenho, que prefere não ser identificado porque 'a Rússia e o livre pensamento não têm lá muitas afinidades eletivas'

Por Flávio Ricardo Vassoler
Atualizado em 14 jul 2018, 09h52 - Publicado em 14 jul 2018, 09h46

Vladimir Vladímirovitch Putin (1952 – ) nasceu em Leningrado, antigo nome de São Petersburgo até o colapso da União Soviética, que ocorreu em dezembro de 1991.

Em um bar da rua Rubinstein, uma das travessas da avenida Niévski, no coração da cidade, entro em contato com o sexagenário Vassili Vassilievitch Kuznetsov, que, a despeito de ser um putinista ferrenho, me pede que seu nome verdadeiro não seja divulgado. “Sabe como é, né? A Rússia e o livre pensamento não têm lá muitas afinidades eletivas”, sentencia Kuznetsov.

A seguir, compartilho com vocês os principais trechos de nosso diálogo entremeado por um sem-número de doses de cerveja e vodca.

Eu: Quer dizer então que o senhor fala amém para o fato de Vladimir Putin ter blindado seu antecessor e padrinho político Boris Iéltsin de quaisquer investigações judiciais por parte da Procuradoria Federal?

Vassili Vassilievitch Kuznetsov: Antes de mais nada, jovem, não precisa me chamar de “senhor”. O Senhor sequer existe no céu solitário e silencioso, então deixemos de cerimônias. Em seguida, é preciso dizer que as suas colocações simplesmente desconsideram a história encarniçadíssima da transição de poder na Rússia. Ora, quando você vê o mundo pelo prisma dos anglo-saxões, parece fácil e imediato dizer que é preciso haver alternância no poder, que é preciso respeitar a vitória eleitoral dos adversários. Meu Deus, que exemplo sublime de liberalismo, não? Até parece que os ingleses estendiam a democracia para suas múltiplas colônias – será que os indianos acossados pelas políticas draconianas do imperialista Winston Churchill se viam representados pelo Parlamento britânico? E que dizer dos Estados Unidos e suas leis raciais que, até meados do século XX, negaram aos afro-americanos a mais basilar cidadania? Por que esses imperialistas não olham um pouco mais para o próprio umbigo antes de falarem da Rússia?

Eu: Mas você não respondeu ao que eu perguntei, Kuznetsov. Você me acusa de ocidentalismo, mas nada disso justifica a manobra escusa de Putin para salvaguardar Iéltsin.

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Kuznetsov: Ora, jovem, paremos desde já com as balelas! Bem antes da dinastia Románov, os tsares já matavam seus próprios filhos em meio a lutas figadais pelo poder. (Procure se informar sobre a história do fratricida Ivan, o Terrível, e você saberá como a banda toca por aqui.) Se a Inglaterra e os Estados Unidos puderam desenvolver, com mais organicidade histórica, sistemas de sucessão que conseguem apaziguar (ou melhor, amordaçar) a carnificina, tanto melhor para eles. Não nos esqueçamos, no entanto, de que ao relativo apaziguamento doméstico não corresponde o respeito à autodeterminação dos povos alhures – que o diga a sua América Latina historicamente pilhada pelos estadunidenses, jovem. Salvo engano, não foi o presidente brasileiro João Goulart que, em meados dos anos 1960, antes de levar um golpe de Estado apoiado pela CIA e pelos militares dos EUA, chegou a dizer que, “se os Estados Unidos gostam tanto da democracia, eles deveriam permitir que ela floresça para além de suas próprias fronteiras”?

Eu: Precisamente.

Kuznetsov: Por aí você vê, jovem, como é fácil disparar o bumerangue contra o outro sem querer que ele se volte contra si mesmo.

Eu: Me fale, então, sobre os cuidados sumamente maquiavélicos de Iéltsin para que o bumerangue de Putin não se voltasse contra seu padrinho político.

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Kuznetsov: Piece of cake, jovem, como diriam nossos muy amigos dos Estados Unidos. Vamos lá: a historiografia oficial da Rússia, sobretudo em seu período de hagiografia soviética, negaria o que vou dizer até a morte – aliás, ela negaria o que vou dizer até a minha morte –, mas Lênin não foi apenas isolado (e exilado) por Stálin depois de seu derrame. Paulatinamente, Lênin foi sendo envenenado. Eu não preciso fazer menção, é claro, às disputas profundíssimas em meio ao todo-poderoso triunvirato composto por Stálin, Zinoviev e Kamenev, das quais apenas o primeiro saiu com vida. E o próprio Stálin, alçado à condição de Guia Genial dos Povos, não escapou de morrer sob forte suspeição, a despeito de seus mais de 25 anos no poder. Quando Stálin começa a definhar em sua datcha nas cercanias de Moscou, seu braço direito na política de expurgos e extermínios, o também georgiano Lavrenti Beria, toma as devidas precauções para que os médicos demorem mais de 24 horas para atender o moribundo. Com a morte de Stálin, uma disputa acirradíssima se estabelece entre Beria e Nikita Khruschov, ao fim da qual Beria é preso e fuzilado da mesma maneira que seus milhões de vítimas: 9 mg de chumbo são disparados contra sua nuca. E quanto ao bom de briga Nikita Khruschov, padrinho político da Tsar Bomba, o artefato nuclear mais terrível que a imaginação humana já concebeu? Carismático e sumamente querido pelo povo, Khruschov procurou desestanilizar a União Soviética, jovem, mas, após a crise dos mísseis, em Cuba, a cúpula político-militar o considerou um destemperado e aproveitou para forçar o revisionista Khruschov à renúncia – diante disso, você conseguiria acreditar que o velho Nikita teve uma morte tranquila e natural anos depois? Eu poderia prosseguir até Mikhail Gorbatchov, jovem, que só foi salvo de um golpe militar – e de um possível fuzilamento – por Boris Iéltsin, mas vou parar por aqui a fim de que você entenda, de uma vez por todas, que soluções mágicas não existem, não há coelhos subitamente sacados da cartola. Iéltsin foi o primeiro presidente eleito democraticamente após o fim da União Soviética. Se não fosse um alcoólatra contumaz e se não estivesse muito mal de saúde, é provável que Iéltsin quisesse se perpetuar no poder, mas, como as condições não lhe eram favoráveis, foi preciso escolher um sucessor. Como você sabe, a bênção coube ao ex-agente do KGB Vladimir Putin, que, escolado na tradição maquiavélica, entendeu que, para receber o cetro do poder, seria preciso proteger seu antecessor das terríveis retaliações que a sucessão do poder na Rússia traz em seu bojo.

Eu: O diabo diria que faz todo o sentido.

Kuznetsov: Dante talvez tenha pensado na dinâmica do poder na Rússia quando inscreveu a seguinte máxima no portal do inferno: “Abandonai toda a esperança, vós que entrais”.

Eu: E, por falar no diabo, é precisar lembrar de seu Criador: há pouco, pude entrever que você não tem lá muito apreço por Deus. Sendo assim, Kuznetsov, como você vê a aliança cada vez mais estreita entre Putin e a Igreja Ortodoxa? Não lhe parece uma enorme espetacularização midiático-religiosa que Vladimir Putin, um ex-agente do KGB que se diz ortodoxo, apareça na TV estatal russa, com o torso nu, para celebrar o batismo de Jesus Cristo no rio Jordão mergulhando nas águas gélidas do lago Seliger a -6ºC?

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Kuznetsov: Mais uma vez, jovem, suas colocações pressupõem um ocidentalismo alheio às tradições russas. Veja: o povo russo, historicamente, gosta de ver o rosto de seu líder. Que são as instituições democráticas senão meras abstrações impessoais? Não é por outro motivo, meu caro, que os soviéticos fizeram questão de reproduzir uma estátua de Lênin em cada cidade da finada URSS. E mais: eu aposto que, se você visitou, no inverno, o mausoléu de Lênin encravado no coração da Praça Vermelha, o soldado responsável pela segurança do local exigiu que você tirasse o gorro para ver o sarcófago do bolchevique, não foi?

Eu: Exatamente! Ele exigiu que eu descobrisse a minha cabeça como se eu estivesse entrando em uma igreja.

Kuznetsov: Pois então, meu caro: por aí você vê como é difícil desarraigar antigos hábitos do coração do povo. Agora imagine: acertadamente ou não, os soviéticos incutiram no coração da nação uma crença na vitória do socialismo calcada na ética do trabalho. A Rússia, como república soviética mais importante, era uma superpotência respeitada (isto é, temida), o povo era levado a acreditar que alcançaríamos um objetivo grandiosíssimo – a utopia do comunismo passou a ocupar o vácuo deixado pela morte de Deus. Pois bem: quando a União Soviética naufraga, irrompe o caos da guerra civil – todos se digladiam não só pelo poder, mas pelo fato de não haver mais um princípio aglutinador e centrípeto para o todo social. E aí está algo que não sai de imediato de uma cartola, jovem, algo que não pode ser cultivado em laboratório – assim como não é possível transplantar, pura e simplesmente, a cultura democrática anglo-saxã para a Rússia, também não é possível criar a partir do nada uma tradição diante da qual a maioria da população possa se ajoelhar. Ora, mas é aí que o engenheiro social Vladimir Putin, qual um verdadeiro discípulo de Maquiavel, se lembra de uma velha historieta envolvendo Napoleão Bonaparte e o tsar Alexandre I: quando o generalíssimo francês soube que o imperador russo era, ao mesmo tempo, monarca e líder da Igreja, Napoleão teria exclamado ao tsar: “Ora, mas que conveniente!” E, de fato, é muito conveniente que, na Rússia, nós tenhamos uma tradição religiosa antiquíssima que possa reconstituir um ethos de unidade nacional após a cisão da União Soviética. Eu bem que gostaria, jovem, que nossas tradições cívicas fossem mais enraizadas, de modo que um Estado efetivamente laico desse conta de tal empreitada. Mas, como já dissera o grande inquisidor de Dostoiévski, não há agrura maior para o homem do que encontrar alguém diante de quem ele possa se ajoelhar – e isso parece ser ainda mais verdadeiro para as tradições russas. Assim, se o presidente Putin, que conhece a nossa história como poucos, considera que a Igreja Ortodoxa é a instituição nacional à altura de suplantar o luto socialista, é preciso dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.

Eu: Ainda que, para tanto, seja preciso aprovar, com a devida bênção da liturgia ortodoxa, leis retrógradas, autoritárias e obscurantistas, como a que proíbe a divulgação de informações sobre a homossexualidade para menores de 18 anos e aquela que lista uma série de profissões proibidas para as mulheres, com vistas à proteção de suas condições reprodutivas? Não lhe parece que o retorno à Idade Média é um preço muito alto a se pagar em nome de uma (suposta) unidade nacional?

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Kuznetsov: Veja, jovem, eu era um progressista antes mesmo de os seus pais sequer sonharem em conceber você. Sendo assim, posso lhe dizer, com tranquilidade, que não tenho nada contra os direitos das mulheres e dos homossexuais. O argumento de que os movimentos LGBTs e feministas são meros propagandistas ocidentais querendo destruir as bases das tradições russas me parece sumamente débil. Ainda assim, é preciso entender a tradição russa que não tem grande apreço pelo liberalismo político, econômico e comportamental, ainda que você não concorde com ela. Veja: nem preciso mencionar que, de acordo com a lógica bíblica do crescei e multiplicai-vos, a Igreja Ortodoxa se opõe ao homossexualismo e aos amplos direitos civis para as mulheres como vetores de enfraquecimento da família russa – família russa que, para a Ortodoxia, é o ninho por excelência de onde devem sair os seus fiéis. Em seu discurso logo após a quarta vitória eleitoral para presidente, Putin fez menção à dificuldade demográfica que a Rússia vem enfrentando há mais de um século: nossa população se retrai década após década, e isso, é claro, deve ser enfrentado. Se você olhar para os países ocidentais tidos como avançados, verá que a taxa de fecundidade feminina é muito pequena. Que solução eles vêm encontrando para tal problema? Ora, a despeito da xenofobia e do racismo encarniçados nas metrópoles, as antigas colônias do Ocidente vêm fornecendo imigrantes com taxa de fecundidade elevada para endossar as populações de Inglaterra, França, Holanda, Bélgica e congêneres. Acontece que a Rússia já é um país multiétnico e plurirreligioso por excelência, então, por aqui, a questão assume dimensões ainda mais intrincadas: se os russos ortodoxos não se reproduzirem e não disseminarem a fé nacional para seus filhos, os islâmicos do Cáucaso o farão (como já o fazem) em progressão geométrica. Logo, a causa da autonomia regional e do separatismo voltará a ser ecoada por novos e potenciais adeptos. Mais uma vez, ocorre uma confluência entre o ethos de unidade nacional e a religião nacional majoritária, ainda que leis questionáveis sejam aprovadas.

Eu: Peço que você me desculpe, Kuznetsov, pois sei que, pela sua idade, é possível que seu pai tenha defendido a União Soviética dos invasores nazistas como soldado do Exército Vermelho, mas, a bem dizer, eu não vejo muita diferença entre o pensamento totalitário do nacional-socialismo, para o qual o indivíduo e a individualidade devem ser suprimidos em função da reprodução do todo social, e a atual ideologia que vem permeando a Rússia sob Putin. O que você está dizendo pressupõe que uma mulher deva ser discriminada – e, no limite, condenada ao ostracismo – se, por determinação própria, ela quiser seguir uma trajetória mais afeita à sua vocação ao invés de cumprir, de maneira unívoca, seu papel como mãe. E o mesmo vale, em escala de tragédia quiçá ainda mais acentuada, para os homossexuais, já que, como não podem se reproduzir, eles devem ser simplesmente silenciados, como se não existissem. Já que você gosta de recorrer à tradição histórica, Kuznetsov, eu lhe pergunto: a história não lhe fornece exemplos suficientes para atestar que a Rússia sob Putin já foi longe demais e pode acabar legitimando e fomentando as práticas mais perversas e retrógradas contra seres humanos que não possam e não queiram fazer parte da unidade nacional hegemônica?

Kuznetsov: Não farei aqui o papel do sofista que simplesmente invalida as razões de seu interlocutor. Seus argumentos têm validade, jovem, e eu concordo, em parte, com você – concordaria ainda mais, a bem dizer, se eu vivesse em uma sociedade ocidental. Ocorre que, aqui na Rússia, a banda toca de outra forma, como venho tentando lhe explicar. Nas sociedades ocidentais tidas como avançadas, com suas instituições democráticas mais consolidadas, o resultado do individualismo extremo, por meio do qual todos e cada um pensam, antes de mais nada, em si mesmos, tem sido a depressão e o pânico diagnosticados em massa. Isso bem nos mostra a quantas anda a prosperidade no Ocidente – aliás, se aquilo que você chama de anacronismo russo fosse tão peculiar às nossas fronteiras, os Estados Unidos não teriam eleito como presidente alguém com os valores de Donald Trump e uma onda fortemente reacionária não estaria varrendo a Europa do Reino Unido aos Bálcãs. Ocorre que, aqui na Rússia, o individualismo extremado poderia levar à radical retração da população e à cisão do país em várias micronações insignificantes em termos geopolíticos – esse seria o sonho dos Estados Unidos e de seus vassalos que integram a OTAN, não? Salvo engano, a Inglaterra, enquanto era a potência mundial hegemônica, contribuiu sobremaneira para que a América outrora espanhola e colonial se fragmentasse em uma série de países pequeninos que, cindidos e desunidos, não conseguiriam representar qualquer ameaça para as antigas metrópoles, não é mesmo? E você acha que nós não sabemos que o Ocidente quer o mesmo para a Rússia? Eles querem que mil Abecásias e Tchetchênias irrompam do território russo que abarca 1/6 da superfície terrestre. É preciso dividir para cindir, é preciso dividir para reinar: será mais fácil para o Ocidente, então, negociar a espoliação de nossas riquezas.

Eu: Essa sua lógica é bem tendenciosa e perigosa, Kuznetsov: por meio dela, é possível legitimar o alijamento de tendências oposicionistas do seio da sociedade russa, já que, em grande medida, a ideologia putinista entrevê os pensamentos e práticas que lhe são contrários como forças fratricidas e centrífugas. Assim, em nome da unidade nacional, é possível impedir que os opositores de Putin, em Moscou, coloquem fitas brancas em seus carros; em nome de uma Rússia cada vez mais forte e autoconsciente de suas tradições, é válido elevar as multas para os participantes de manifestações políticas a quase 10 mil dólares, valor que excede a renda anual de boa parte dos russos; em nome de uma Rússia estável que cada vez mais caminha rumo à monarquia, é desejável que quaisquer opositores passíveis de apresentar riscos eleitorais a Putin sejam expurgados da disputa presidencial, tal como aconteceu com o liberal Alexei Navalny. Não seria radicalmente coerente, então, que Vladimir Putin incinerasse de uma vez o direito constitucional como o fez o presidente chinês Xi Jiping, que logrou aprovar uma emenda (a bem dizer, um decreto) a partir da qual não há mais limite para a sucessão de seus mandatos? Ao fim de seu quarto mandato presidencial, em 2024, Putin terá permanecido no poder durante 20 anos, superando o tsar Alexandre III, que reinou durante 13 anos, entre 1881 e 1894, e o longevo premiê soviético Leonid Brejnev, que governou a URSS de 1964 até o ano de sua morte, em 1982. Que tal coroar o ex-agente do KGB e fiel ortodoxo Vladimir Vladímirovitch Putin como o novo tsar que poderá realizar a síntese entre as tradições monárquica e soviética na Rússia?

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Kuznetsov: Sabe por que nós dois estamos aqui falando há um bom tempo sobre as inúmeras contradições da Rússia, jovem? Porque, diferentemente da Islândia e da Namíbia, de Luxemburgo e da Bolívia, da Nicarágua e do Laos, a Rússia é uma potência nuclear capaz de buscar a autodeterminação a partir de seus próprios valores. Você não vê a mídia ocidental criticando os haréns árabes ou asiáticos e as vendas de escravos em países da África em pleno século XXI, vê? E por quê? Porque esses países não têm a menor condição de arranhar a hegemonia dos Estados Unidos. Agora, para os gigantes Rússia e China sobram denúncias e bordoadas tão veementes quanto hipócritas. É claro que ninguém sairia ganhando com uma hecatombe nuclear, a não ser as parcas baratas fosforescentes que continuariam vivas para contar a história. Mas, com a liderança de Putin, a Rússia terá cada vez mais condições de narrar a sua própria história a partir de marcos que lhe são realmente autóctones.

Eu: Você vislumbra alguma perspectiva de que, em algum momento não tão longínquo, a Rússia e o Ocidente venham a encontrar pontos de confluência para o estabelecimento de relações menos temerárias para a humanidade como um todo?

Kuznetsov: Novamente me voltarei para o pathos de Fiódor Dostoiévski, um autor que, em muitos momentos de sua obra, hasteia bandeiras eslavófilas que o transformariam em conselheiro vitalício de Vladimir Putin. Para boa parte das personagens de Dostoiévski, sempre há esperança, até que o cortejo fúnebre conduzido por dois ou três entes queridos e amigos acompanhe nosso caixão até a sepultura.

Sobre o autor

Flávio Ricardo Vassoler, escritor e professor, é doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (EUA). É autor das obras O evangelho segundo Talião (nVersos, 2013), Tiro de misericórdia (nVersos, 2014) e Dostoiévski e a dialética: Fetichismo da forma, utopia como conteúdo (Hedra, 2018), além de ter organizado o livro de ensaios Fiódor Dostoiévski e Ingmar Bergman: O niilismo da modernidade (Intermeios, 2012) e, ao lado de Alexandre Rosa e Ieda Lebensztayn, o livro Pai contra mãe e outros contos (Hedra, 2018), de Machado de Assis. Página na internet: Portal Heráclito, https://www.portalheraclito.com.br.

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