Um mundo invertido: ‘Stranger Things’ e um planeta que não para de adoecer
Partindo do famoso seriado de TV, colunista discute como inversão de valores na saúde pública prejudica prevenção de doenças emergentes, como a obesidade

A poderosa série Stranger Things nos leva a uma viagem por mundos e poderes sobrenaturais em dimensões paralelas. Por sorte tudo aquilo é ficção, mas, na medicina da realidade, estamos vivendo um roteiro sordidamente parecido com o da tela.
Nos últimos 20 anos, a incidência de uma série de doenças tem aumentado de forma alarmante. Obesidade, diabetes, doenças cardiovasculares, neurológicas e psiquiátricas, bem como diversos tipos de câncer, têm levado a população mundial a ser degradada e destruída.
Os custos no tratamento e no cuidado resultarão, em pouco tempo, na quebra de todo o sistema de saúde, seja o público ou o privado.
Não existirão recursos para pagar as intervenções para os amputados, cegos e em programa de diálise devido ao diabetes, os infartados e com dificuldade de locomoção causada pela obesidade, as vítimas das sequelas de derrames, as pessoas em tratamento contra tumores… Isso sem falar nos quadros de ansiedade, depressão e afins, diagnosticados cada vez mais cedo.
Em um mundo, estamos caminhando a uma medicina de ponta, com aparelhos de última geração, medicações sofisticadas e um mar de lucros e despesas. Em outro, o mundo invertido, vemos brasileiros à deriva e sem qualquer bote salva-vidas.
Faz tempo que boa parte dos maiores fundos de pesquisa se voltam para ideias que produzam novos tratamentos. Prevenir, entender ou intervir na causa das enfermidades crônicas nem sempre é uma prioridade.
Estamos, a meu ver, diante de uma total inversão de valores sociais, morais e éticos, em que o lucro das mais diversas indústrias precede o cuidado com as pessoas.
Nesse mundo invertido, farmácias se proliferam a cada esquina, pesquisas de novas drogas alardeiam seus lucros nas bolsas e o culpado das doenças é camuflado e escondido da melhor forma possível, para que não atrapalhe um negócio tão rentável.
O fato é que, embora tenham mais anos pela frente do que no passado e tenham mais acesso a tratamentos também, as pessoas continuam adoecendo. E num ritmo impressionante.
Entramos num labirinto escuro, onde os demogorgons (os monstros da série citada) dos lucros nos impedem de achar o melhor caminho. Bloqueiam as progressões e fazem o que podem para dificultar a chance de se encontrar a cura das doenças – que dirá sua devida prevenção, a queda nesse universo obscuro.
Alimentos ultraprocessados, microplásticos nas embalagens, telas e redes sociais, poluição, cigarro, manipulações genéticas, agrotóxicos, estresse. Poderíamos ficar o dia todo encontrando peças que contribuem para esse quebra-cabeças. Sabemos que elas estão lá, mas pouca gente se interessa em desmontá-las.
Prevenção não dá lucro e seus benefícios financeiros costumam ser tardios. Para que investir ou pedir votos com essa finalidade?
Sem tocar nessas feridas e enfrentar o desconhecido, contudo, permaneceremos nesse mundo escuro, invertido e letal.