‘Zona Cinza’: o buraco em que a classe média se meteu
Filósofo toca em feridas sociais e mobiliza conceitos para discutir o horizonte de desresponsabilização e inação que se apoderou de parte dos brasileiros

O professor e pesquisador mineiro Victor Hermann tem certo lugar de fala, ou melhor, fala de um lugar que vive às sombras de uma catástrofe social e ambiental. Natural de Itabira, uma cidade tomada pela indústria da mineração, o filósofo e seus conterrâneos têm ciência dos riscos relacionados à contaminação do solo e dos rios, bem como a noção de que, caso uma barragem seja rompida na região, o destino dela pode ser semelhante ao de tragédias como Mariana e Brumadinho.
É a partir de uma caminhada por sua terra e angústias natais que Hermman dá início ao livro Zona Cinza – A Classe Média no Meio da Catástrofe, recém-publicado pela Editora Relicário. Entre as placas indicando rotas de fuga em caso de emergência instaladas pela Vale, o grupo que comanda o pedaço, seguiremos seu itinerário de investigação sobre uma sociedade às voltas com a trombeta apocalíptica das mudanças climáticas e da destruição da natureza, mas que, mesmo informada do desastre iminente, não se sente motivada a agir.
Zona Cinza é destinado, fundamentalmente, à classe média, a parcela da população que, ainda que munida de informação e conhecimento, com frequência não se vê responsável pelas desordens socioambientais nem lucra tanto com elas – terceirizando tudo o que de errado acontece para um tal de “sistema” -, ao mesmo tempo que não consegue se engajar efetivamente para mudar esse mesmo sistema. O problema (e a solução) está sempre com o outro – a política, a elite, o mundo…
Criando e reciclando conceitos, como esse limbo ao qual a classe do meio está aferrada confortavelmente, o filósofo esboça diagnósticos e terapias, dialogando com pensadores nacionais e estrangeiros e se debruçando também sobre o papel da arte em um enredo que nos cobra muito mais do que a leitura dos jornais (ou dos posts) e a mera conscientização. E é assim que iremos deparar, nas páginas do livro, com performances, filmes e nomes da literatura como Thomas Pynchon e W.G. Sebald em meio às manifestações sintomáticas do noticiário e das redes sociais.
Como escapar desse beco marcado por uma “contradição infeliz entre o que sabemos sobre o risco de catástrofe e o que nos mobiliza a correr esse risco?”
Com a palavra, Victor Hermann.
Afinal, o que abrange a tal da “zona cinza”?
No uso corrente, o termo “zona cinza” descreve situações ambíguas, obscuras, no limite do que é considerado legal, ético ou moral. Numa situação cinzenta, é difícil determinar o que é causa e o que é efeito, o legal e o ilegal, lucro e roubo, acidente e crime. No atual regime de inovação permanente, o capitalismo não para de criar zonas cinzentas, a cada vez que o empreendedor reivindica o direito de “destruir criativamente” o mundo em nome de uma oportunidade de negócio. Para que esse regime de destruição criativa funcionasse sem solavancos, foi necessário criar garantias que permitissem aos operadores das zonas cinzentas atuar com foco na inovação e no lucro, sem temerem ser penalizados por algo ainda não inteiramente definido como ilegal, amoral ou antiético.
No livro, identifico dois processos: desresponsabilização e mobilização. O primeiro corresponde a um conjunto de leis, técnicas, práticas e processos que garantem a transferência da responsabilidade individual para o “sistema”. É o que a Vale fez no caso de Brumadinho, ao contratar uma empresa alemã especializada em certificação de segurança para atestar que a barragem estava “no limite”, com o objetivo de desresponsabilizar seus operadores e diminuir a pressão do Ministério Público. Mas as desresponsabilizações não funcionariam bem se o indivíduo não contribuísse criativamente para fabricar, a cada situação, sua própria impotência diante de algo potencialmente ilegal, amoral ou antiético. Denominei esse modo especial de subordinação ativa, de obediência criativa, de mobilização.
Qual é o maior desafio atual para nós, cidadãos do mundo da classe média, conseguirmos sair da “zona cinza”?
Para sair da zona cinza, basta permanecer no mesmo lugar, reconhecer que ocupamos áreas de risco. Como sugere a filósofa Donna Haraway, precisamos aprender a “ficar com a encrenca” causada pelo capitalismo. Devemos reaprender a viver e pensar em uma Terra mais precária, irredutível às necessidades humanas — e a trabalhar a partir dos limites que ela impõe. Mas é conveniente ignorar que se mora numa área de risco, ou que se ocupa um papel concreto na cadeia de produção da catástrofe. É confortável agir com a convicção de que toda responsabilidade recairá sobre o sistema.
Além disso, empregar a criatividade na fabricação da própria impotência costuma resultar numa experiência suave de obediência. A equipe que instalou as sirenes que falharam em Brumadinho certamente não tinha em mente nada além dos critérios técnicos e da legislação no momento da instalação. Portanto, nosso maior desafio é abrir mão do conforto de viver na zona cinza.
A acídia, conceito que você recupera dos tempos medievais, nos faz pensar também na falta de perspectivas (ambientais, sociais, existenciais…) para o mundo – como se retornássemos a uma idade das trevas. Em que medida a visão da catástrofe é responsável pela nossa desresponsabilização e inércia?
Na Era das Catástrofes, teremos de reaprender a lidar com os sofrimentos psíquicos, que tendem a se intensificar e tomar novas formas. Recuperei o termo medieval “acídia” por desconfiar que a noção atual de “depressão” está excessivamente condicionada pela ordem capitalista do trabalho. Originalmente um dos sete pecados capitais, a acedia cordis — “inércia do coração” — foi aos poucos esquecida pelo mundo moderno, que a substituiu por pigritia, o “desejo imoderado de repouso e prazeres”. A escolha por censurar a preguiça, em vez da acídia, revela a centralidade do trabalho na modernidade.
A moderna definição clínica de depressão segue essa mesma lógica. Como mostra Christian Dunker em Uma Biografia da Depressão, há controvérsias e até dificuldades em delimitar essa patologia. A acídia, por sua vez, não concentrava sua atenção na restauração da capacidade de realizar atividades. Como todo conceito medieval, a acídia possui definição ampla e ambígua, mas cobre, em linhas gerais, o que hoje chamamos de estado depressivo. A diferença está no foco: não era a dificuldade de trabalhar ou consumir que preocupava, mas a incapacidade de se mover em direção ao bem divino — na prática, a indisposição de buscar e sentir alegria espiritual no cuidado com o outro.
Mas há remédio para isso?
Se a depressão pode ser atenuada com medicamentos — bastando restituir o mínimo de disposição física e atenção para realizar atividades, como trabalhar e consumir —, a acídia exige outro tipo de cura, ou pharmakon, mais experimental, mais solidária. Aqui, a medida da saúde é a recuperação da capacidade do indivíduo de se importar com o outro e de sentir alegria nesse cuidado. Diante da agenda de tristeza profunda e vazio espiritual imposta pela Era das Catástrofes, o conceito de acídia me parece mais eficaz — e mais radical — do que o de depressão.

Enfrentar o risco sem abrir mão da prudência… e de um olhar para o outro. Como viabilizar essa proposta tendo que pagar os boletos, trabalhar, cuidar da casa e dos filhos…?
Nesta resposta, gostaria de me dirigir àqueles dispostos a abrir mão do conforto de viver na zona cinza. Isto é, os que buscam ativamente meios de se responsabilizar pela destruição criativa hoje operada pelo sistema. Os que já não se deixam convencer com facilidade de sua suposta impotência diante do domínio de políticos corruptos e megacorporações impiedosas. Os que estão sinceramente insatisfeitos com uma vida reduzida a pagar boletos, cuidar da casa e criar filhos num mundo catastrófico.
Para quem deseja sair da zona cinza, o desafio central é construir meios que permitam assumir — e redistribuir — responsabilidades em larga escala. A lógica de desresponsabilização é perversa: quanto mais obediente ao sistema, quanto mais criativamente você exercer sua impotência, menos culpado será pela catástrofe gerada pela destruição criativa da qual participa. O sistema te cobre.
Por outro lado, basta que você hesite diante de uma oportunidade de negócio, basta que aja com prudência diante de um risco — um gesto de desobediência, nesse contexto — para que o sistema te aponte como o único responsável pela catástrofe. E, se a catástrofe não acontecer, pior: ainda assim, você será punido — desta vez, pelo próprio capital, que não tolera hesitação diante do lucro.
Então, nesse caso, agir implica retaliações…
Hoje, não há qualquer garantia legal — ou mesmo sociocultural — que permita à classe de meio assumir responsabilidades sem sofrer retaliações. O engenheiro da Vale que, sozinho, decidir denunciar o risco de rompimento de uma barragem enfrentará sanções severas — sobretudo se a catástrofe não ocorrer. Casos como o de Julian Assange e seus informantes mostram o que acontece com quem não obedece criativamente.
Por isso, discordo de Eliane Brum quando propõe um “negacionismo sincero” entre pessoas conscientes da catástrofe. Esse tipo de debate, além de estimular acusações entre companheiros, desemboca em dilemas de consumo — comer ou não carne, usar ou não ar-condicionado, e assim por diante. Não se trata apenas de um problema de consciência, mas de combater mecanismos concretos que impedem o exercício ativo da prudência em fluxos de destruição criativa. Sem isso, continuaremos confusos, temerosos e exaustos demais para agir — mesmo quando já sabemos que é preciso.
Você também reflete no livro sobre o papel da obra de arte como resposta ao risco e à catástrofe. Quais os potenciais e os limites da literatura, das artes plásticas e das performances numa era de fissura por conteúdos rasos e imediatos em redes sociais?
O próprio conceito de catástrofe possui uma dimensão estética. Acidentes são ocorrências pontuais, com efeitos destrutivos delimitados no espaço e no tempo — como quebrar o pé. Já as catástrofes têm um poder destrutivo ilimitado. Um pé quebrado, para um motorista de Uber, é uma catástrofe. Para construir uma percepção da catástrofe, ciência e direito não bastam. É preciso filosofia, para tornar pensável o horizonte sem limites que ela traz. E é preciso arte, se quisermos tornar a catástrofe experienciável.
De que adianta somente atirar conceitos científicos como “precarização” ao motorista de Uber, se, na correria do dia a dia, as emoções se confundem — o prazer de dirigir, a vergonha do rebaixamento social, o desejo de trazer comida para casa, a ambição empreendedora, a depressão diante de uma rotina extenuante, as dores na coluna etc.? Como exigir que ele aja contra o sistema, quando esse emaranhado de sentimentos drena a energia e dói a alma, ao mesmo tempo que estimula a fazer mais e melhor?
Sem a ajuda da arte, torna-se difícil organizar os afetos em direção a uma resposta transformadora à catástrofe. Sem a MPB, talvez não tivéssemos compreendido tão bem a catástrofe da ditadura militar; sem Madonna, teríamos tido mais dificuldade em conceber uma vida possível – e prazerosa – diante da pandemia da aids. Aliás, onde estão as grandes canções sobre o aquecimento global?
A arte encontra-se em maus lençóis desde que adentramos o “semiocapitalismo”. Hoje, o fluxo de signos substituiu a produção de bens materiais como principal força motriz da economia. A Uber vale mais do que a Toyota porque dados sobre trânsito valem mais do que os próprios meios de transporte. Se antes produzir carros e escrever livros eram atividades razoavelmente distintas, hoje a linha que separa a criação artística da “produção de conteúdo” tornou-se tênue.
Diante desse cenário, como a arte deve se reposicionar na luta contra o sistema? O capitalismo produziu uma catástrofe semiótica que a arte terá de enfrentar. Seus sintomas mais visíveis são os conteúdos rasos e imediatistas que invadiram todos os campos do saber e da vida social.
O capitalismo de plataforma opera a partir da cisão entre metadados e dados, entre sintaxe e semântica ou, em termos simples, entre forma e conteúdo. Há uma razão para que, nas redes sociais, todos precisem gritar e falar rápido se quiserem ser ouvidos — mesmo tratando de temas tão distintos como ioga, racismo ou futebol. As Big Techs não se interessam pelo que dizemos, mas pela possibilidade de extrair metadados sobre nossa atenção. Esses dados alimentam modelos preditivos de comportamento consumidor e sustentam leilões publicitários direcionados a cada globo ocular.
Como monopolizam o ecossistema de comunicação, essas empresas podem se dar ao luxo de ignorar completamente o conteúdo. O algoritmo — essa caixa-preta sobre a qual pouco sabemos — não premia qualidade, mas capacidade de captar e reter um tipo específico de atenção monetizável.
E essa dinâmica impacta nosso próprio comportamento, não?
Submetidos à pressão constante desse meio, nós, usuários, passamos a nos relacionar com a comunicação do mesmo modo que um investidor se relaciona com um ativo. Pouco importa se se trata de sacas de café ou conteúdos sobre arte: o que importa é reconhecer as “formas” mais rentáveis e acompanhar a cotação dos assuntos em alta. Postar nas redes é um tipo de aposta — uma especulação com a atenção alheia em busca de relevância algorítmica. Essa cisão entre sintaxe e semântica, entre forma e conteúdo, é, ela mesma, uma catástrofe — e não cessa de produzir episódios nonsense, como a cena em que Donald Trump preferiu arriscar a própria vida para transformar um atentado em imagem viral.
Como construir saber sobre a catástrofe num contexto em que as mensagens são valorizadas não pelo que comunicam, mas pelo quanto monetizam a atenção? A arte terá uma longa batalha pela frente para reconstruir os laços entre sintaxe e semântica, em favor de uma comunicação mais prudente, responsável, inclusiva e criativa.