Afrocentrismo, branquitude, colorismo, democracia racial… Uma porção de expressões criadas para desvelar processos marcados pela sujeição ou discriminação de um grupo ou povo ganhou evidência nos últimos anos, verbalizando ainda mais a luta contra os racismos.
Mas é fato que nem sempre os termos, muitos deles desenvolvidos em círculos da academia e do ativismo, são bem entendidos e utilizados nos espaços dedicados ao compartilhamento de ideias e ao diálogo – seja dentro ou fora dos meios digitais.
Será que o governo Bolsonaro cometeu um “genocídio” durante a pandemia de Covid-19? “Raça” envolve elementos genéticos e físicos ou seria uma construção meramente cultural? Qual a diferença para “etnia”? Com a missão de elucidar e desmistificar palavras que vão de “ação afirmativa” a “xenofobia”, um trio de pesquisadores acaba de nos oferecer o Dicionário das Relações Étnico-Raciais Contemporâneas, da editora Perspectiva.
Organizada pelos sociólogos Flávia Rios e Marcio André dos Santos e pelo antropólogo Alex Ratts, a obra reúne 55 verbetes sobre esse universo, assinados por grandes nomes dos estudos do racismo, entre brasileiros e estrangeiros. Mais do que um dicionário, a publicação tem força enciclopédica e narrativas que servem de consulta, mas também como leitura de cabo a rabo.
Vem ocupar uma lacuna nas estantes, livrarias e bibliotecas: a de uma obra que lança luz sobre pesquisas e conhecimentos delineados em solo brasileiro, americano (no sentido das Américas mesmo) e africano, sem deixar de contemplar eventos e comportamentos cujas vítimas não são propriamente os negros ou os indígenas, a exemplo do Holocausto judaico, da islamofobia e do perigo amarelo (preconceito contra asiáticos).
Agrega, portanto, não só aos acadêmicos, escritores e jornalistas que cobrem o tema, mas a todo mundo que quer compreender melhor uma teia de nomes, definições e correntes de pensamento que, em comum, expõem a luta contra o racismo.
Dicionário das Relações Étnico-Raciais Contemporâneas
Com a palavra, os autores.
Como surgiu a ideia de desenvolver o dicionário e que lugar esperam que ele venha a ocupar na literatura e no mercado editorial brasileiro?
A ideia de elaborar um dicionário das relações étnico-raciais contemporâneas tem várias razões. O Brasil é um país muito diverso, com forte presença demográfica negra. Além disso, temos um longo histórico de escravidão com consequências marcantes na sociedade contemporânea, o que pode ser notado nos resultados das pesquisas que revelam desigualdades sistêmicas. Isso também pode ser notado nas denúncias de discriminação e preconceitos raciais e situações corriqueiras presentes nas redes sociais e na imprensa nacional.
Ficamos motivados em organizar o livro porque o Brasil possui uma longa tradição de estudos étnicos e raciais sobre povos indígenas, negros, asiáticos, judaicos e nunca havia produzido um dicionário com essas características, muito embora tenha traduzido de outros países obras dessa natureza.
Temos dicionários sobre a escravidão, porém não tínhamos um dicionário especializado em conceitos tanto clássicos quanto contemporâneos que são experimentados na vida cotidiana dos brasileiros e na vida acadêmica nacional. Os brasileiros costumam ser chamados com certa regularidade a escrever em enciclopédias e dicionários internacionais, porém não haviam escrito a partir de sua realidade um dicionário do mesmo porte. Enfim, conseguimos fazer esse esforço, que tem sido bem recebido pelo público nacional e estrangeiro.
Por fim, queríamos um dicionário que fosse multidisciplinar, com pesquisadores de diferentes áreas como Antropologia, História, Filosofia, Sociologia, Direito, Ciência Política, Urbanismo, Literatura e Linguística e Geografia. Foi realmente um grande empreendimento, realizado com a inteligência nacional e internacional.
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Embora dicionários e enciclopédias sejam particularmente bem-vindos a estudiosos, acadêmicos e ativistas, acreditam que a obra de vocês também venha a interessar e a instruir o público geral? Qual a importância de a sociedade tomar maior conhecimento sobre os termos e conceitos ali contidos?
Acreditamos que o dicionário tem esse potencial de abrangência, sim. Pensamos em um livro que seja o mais acessível possível a uma variedade de leitores: estudantes secundaristas, universitários, ativistas sociais, jovens, trabalhadores no geral. Um dicionário difere-se de um livro comum porque não há obrigatoriedade em ler todo ele de uma vez só. A ideia é que os leitores façam uso da obra periodicamente, porém de forma constante, a depender da curiosidade ou da necessidade.
Os debates sobre relações raciais e étnicas têm se tornado cada vez mais importantes para entender a complexidade da sociedade brasileira. Conceitos e ideias tais como ação afirmativa, racismo, antirracismo, colorismo, literatura negra, xenofobia, branquitude, dentre muitos outros, têm aparecido com certa frequência em meios de comunicação, filmes, novelas e no debate público, gerando reflexões diversas.
A sociedade brasileira mudou e está mudando também a maneira como ressignifica tudo isso. Ser preconceituoso pega mal, especialmente entre as gerações mais jovens, mais antenadas com as transformações recentes. É evidente que há muito trabalho a ser feito ainda, não dá para descansar quanto a isso. Afinal, estamos enfrentando uma onda conservadora e retrógrada no Brasil, o que se reflete em comportamentos racistas, xenófobos e homofóbicos de toda ordem. Um dicionário especializado em relações raciais e étnicas pode ajudar nesse processo educativo e transformador mais abrangente. É um instrumento a mais na construção de uma sociedade antirracista e mais respeitosa com as diversidades.
Alguns verbetes trabalhados no livro por vezes são mal compreendidos ou mal utilizados na esfera pública. Poderiam destacar qual ou quais seriam os mais críticos nesse sentido – e por que é fundamental propagar uma definição mais adequada?
O dicionário tem vários verbetes que são muito utilizados no debate público e por vezes são mal interpretados. Um exemplo mais evidente é o próprio conceito de “raça”. Esse termo, por vezes, é usado como sinônimo de “etnia” quando, na verdade, os dois termos têm histórias e sentidos distintos.
O primeiro tem uma trajetória bastante longa e está intimamente ligado à história ocidental, envolvendo subordinação especialmente via o uso do empreendimento colonial. Nele já há explicitamente um componente de hierarquização de grupos baseados simultaneamente em história, cultura e fenótipo. Por sua vez, embora o termo “etnia” também tenha uma história com o mundo colonial, seu uso marca fronteiras entre grupos, destacando diferenças históricas e culturais, não necessariamente estabelecendo hierarquias entre grupos ou valendo-se de critérios fenotípicos enquanto marcadores de diferenças e desigualdades.
Termos como “branquitude” também têm gerado muito debate e muitas vezes as pessoas se equivocam ao usá-los. Pensam, por exemplo, que branquitude refere-se à cor de um determinado grupo social quando, na verdade, trata-se de uma estrutura de vantagens e de desvantagens para os grupos socialmente racializados. Costumeiramente, favorecendo brancos em detrimento de grupos não brancos, como indígenas, negros e asiáticos.
Por fim, vale destacar o termo “identidade”, usado no dia a dia de todos nós e bastante utilizado na vida política, inclusive levando a muitas disputas. Aliás, atualmente, ele tem sido usado como algo negativo como, por exemplo, na expressão “grupos identitários” ou mesmo identitaristas. Bem, o verbete no dicionário vai mostrar que esse termo tem longa história, possui múltiplas interpretações e o conceito, em si mesmo, não pode ser valorado, posto que faz parte da nossa dinâmica social. Aprendemos também que identidades são contingentes, contextuais e usadas estrategicamente para as lutas por reconhecimento e direitos políticos de grupos que são racializados e sofrem injustiças no mundo atual.