‘Temos o privilégio de quebrar todas as regras’, diz vencedor do Goncourt
Autor do romance laureado com o prestigiado prêmio francês fala de sua obra recém-publicada no Brasil e do poder da ficção
Uma obra de arte capaz de enfeitiçar quem a contempla. Um segredo guardado pelo Vaticano. Uma história improvável de amizade, dor e superação. Eis três ingredientes que fariam um livro ser bem-sucedido. Porém, só a habilidade do cozinheiro torna a receita boa literatura. E, voilá, é o que nos oferece o francês Jean-Baptiste Andrea em Velai por Ela, o romance vencedor do último prêmio Goncourt que acaba de sair no Brasil pela Editora Vestígio.
A obra, laureada com a distinção mais cobiçada nas letras francesas, narra os périplos do pequeno grande escultor Michelangelo Vitaliani – pequeno na estatura, grande pela carreira que irá construir. Conhecemos o protagonista em dois momentos, à beira da morte em um mosteiro nos anos 1980 e em sua juventude situada no tenso início do século XX. Francês radicado no norte da Itália, Mimo, como é conhecido pelos íntimos, tem uma rara habilidade em dar formas à pedra.
Esse talento fará o jovem e pobre aprendiz de escultor conhecer Viola, menina de berço esplêndido que, entre encontros e desencontros, será a amiga e parceira de sua vida. Crescendo e aparecendo nos anos do fascismo, Mimo se tornará célebre, verá que a fama não alimenta tão bem a alma e, num arroubo de gênio, esculpirá uma obra sacra que marca profundamente quem a vê – uma obra que, de tão fascinante, acaba escondida pela Santa Igreja.
Velai por Ela é daqueles romances clássicos e surpreendentes, que, com o perdão do chavão, nos induzem a não querer parar de ler. A boa literatura também tem esse condão. Em entrevista a VEJA, Jean-Baptiste Andrea fala do seu processo criativo e do poder da arte e dos livros.
Com a palavra, o autor.
Velai por ela
O mistério é um dos mais importantes ingredientes de um bom romance?
Bem, eu diria que não. Quero dizer, é um ingrediente importante neste romance em particular, com certeza. De fato, foi a ideia original do livro: uma misteriosa obra de arte escondida pelo Vaticano. Mas eu não acredito que o mistério como regra seja o ingrediente de um bom romance. Na verdade, não acredito em regras. Como escritores, temos o privilégio de poder quebrar todas as regras, se quisermos. Então eu seria bastante relutante em declarar que as coisas devem ser feitas nessa ou em outra direção.
Eu trabalhei por 20 anos na indústria cinematográfica antes de me tornar escritor. Aprendi muito. Foi como um treino. Mas nesse meio há muitas regras, às vezes ditas, às vezes não ditas. Há várias pessoas trabalhando num filme e você não pode fazer tudo o que quiser. E eu sentia que tinha aprendido bastante naquele ofício e precisava abrir minhas asas. A literatura me ofereceu essa espécie de liberdade, a liberdade de quebrar todas as regras.
Pode nos contar como foi o trabalho de recriar um período histórico – as primeiras décadas do século XX – numa trama ficcional?
Eu não fiz muita pesquisa para escrever o livro. Tendo a escrever sobre aquilo que já sei, de modo que possa ir além de simples descrições dos eventos históricos. Então eu procuro escrever sobre as emoções que determinada paisagem ou contexto histórico e político despertam em mim.
Para conseguir isso, preciso conhecer o tema sobre o qual estou escrevendo. Para este trabalho em particular, eu estudei história, economia e ciência política – elas fizeram grande parte da minha formação. Eu estava muito interessado nessa parte da história do século XX. A tirania. É fascinante para um romancista porque é também um estudo da loucura humana. E não estou dizendo que foram bons tempos. Foi uma época horrível. Mas, obviamente, rende um grande material.
Cheguei a checar algumas poucas datas sobre o período, mas já sabia a maior parte dos fatos daqueles tempos. Então veio naturalmente. Eu não defino o livro como um romance histórico, algo que me soa cheio de pesquisas e detalhes que o escritor quer passar para o leitor e sobrecarregá-lo com isso. Essa não é minha intenção. A história principal deste livro é a do encontro de duas pessoas que nunca deveriam ter se conhecido.
Concorda com a lição de uma das protagonistas do seu romance: “A verdadeira vida está nos livros”?
Com certeza! Do contrário, eu não a teria escrito. Eu acho que muitas pessoas, a maioria delas homens que conheci, não leem ficção porque acreditam ser uma perda de tempo. E vejo isso como algo impressionante, porque os bons romances são, na verdade, atemporais.
Você aprende mais com esses livros do que com qualquer outra coisa. Você pode ler livros de 300 anos de idade e continua aprendendo sobre si e o mundo com eles. É diferente de um ensaio histórico, por exemplo, que costuma perder sua relevância na maioria das vezes, embora haja exceções. Esses textos costumam estar ancorados no tempo em que foram escritos, enquanto um grande romance é absolutamente atemporal.
Então foi isso que quis transmitir quando escrevi aquela frase. A vida real está passando aqui e agora, mas também está nos livros. Porque um bom escritor capta a vida real. Capta a vida.