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Pesquisador recupera e reconstrói romance perdido da saga do Rei Artur

Após investigar e encontrar fragmentos de uma história medieval, autor recompõe aventura em livro prestes a sair no país. Leia o prefácio com exclusividade

Por Emanuele Arioli*
3 jul 2024, 17h28

Após mais de sete séculos perdido, um romance medieval da Távola Redonda foi finalmente redescoberto e está disponível na presente obra: a história do cavaleiro Segurant, que até então se encontrava espalhada por 28 manuscritos medievais em diversas bibliotecas da Europa. Do século XIII ao XV, o romance de Segurant fez grande sucesso e foi amplamente lido na França, na Itália, na Espanha, na Grã-Bretanha, entre outros países da Europa medieval, tendo passado por várias continuações e reescritas. Embora Segurant, o Cavaleiro do Dragão, tenha sido um herói muito popular na Idade Média, sua história acabou caindo no esquecimento a partir do fim do século XVI. Agora redescoberto, o romance lança nova luz sobre a lenda do rei Artur e revela um cavaleiro praticamente desconhecido da Távola Redonda.

Antes de mergulharmos nas aventuras do Cavaleiro do Dragão, é importante lembrar que a lenda do rei Artur teve suas raízes na Grã-Bretanha e na Bretanha francesa, como contos em línguas celtas. Essa tradição oral, que poderia remontar até mesmo ao século VI, foi registrada por escrito somente bem mais tarde, florescendo entre os séculos XII e XV. Foi graças às obras de Chrétien de Troyes, escritas na segunda metade do século XII, que os primeiros romances arturianos ganhariam forma.

Rapidamente, as aventuras do rei Artur e de seus nobres cavaleiros reunidos ao redor da Távola Redonda e em busca do Santo Graal se espalhariam não apenas por toda a Europa mas também, um pouco mais tarde, pelo “novo mundo”, já que, a partir do século XVI, algumas dessas histórias atravessaram o oceano Atlântico graças aos livros impressos na Península Ibérica.

No Brasil, porém, foi a história de Carlos Magno e dos pares de França, outra grande epopeia medieval, que teve maior sucesso. Ainda hoje, cavaleiros medievais – mouros e cristãos – percorrem terras brasileiras em cavalhadas. Essas aventuras épicas se encontram também na literatura de cordel do Nordeste brasileiro, onde se misturaram com histórias e contos locais. Assim, os cavaleiros medievais se encontram com os cangaceiros do sertão, em aventuras e histórias de diferentes panos de fundo, mas evocando sempre os mesmos temas eternos e universais da honra, da lealdade, da justiça, do amor e do embate constante entre o bem e o mal.

Segurant, O Cavaleiro do Dragão

cavaleiro-dragao

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Foi a partir da segunda metade do século XX que a lenda do rei Artur se difundiu no Brasil. Isso se deveu, sobretudo, à cultura de massa anglo-saxônica, com seus romances, filmes, musicais, jogos e, mais recentemente, com as séries de TV por streaming. A fonte principal dessa produção anglo-saxônica prolífica foi a grande obra A morte de Artur, escrita pelo autor inglês Thomas Malory no século XV.

Malory logrou condensar em um único livro todos os grandes romances arturianos franceses dos séculos XIII a XV então conhecidos. Entretanto, um mistério permaneceria… Em sua obra, Thomas Malory refere-se a um cavaleiro chamado Severause le Brewse, que passaria despercebido por especialistas e leitores mais atentos até os dias atuais. Segundo Malory, um “livro francês” (não especificado por ele) descreve um combate entre Severause e Lancelote que teria sido proibido pela Dama do Lago, e conta que ele enfrentaria gigantes, feras e um dragão. O herói mencionado por Malory é, sem dúvida, “Segurant le Brun”, o Cavaleiro do Dragão, cuja história completa está revelada aqui neste romance redescoberto, como se ele estivesse sendo convidado a integrar novamente a Távola Redonda.

Em sua origem, a Távola Redonda não contava com Segurant. Ele só passou a existir no século XIII, quando um romance de autoria anônima o retratou como o melhor cavaleiro da corte do rei Artur. A narrativa é estruturada em duas partes, assemelhando-se, respectivamente, a uma Ilíada e a uma Odisseia menores. A primeira parte, encadeando justas e combates, mostra Segurant tal como um Aquiles invencível, superando em bravura e força todos os outros heróis. Já a segunda parte o apresenta à caça de um dragão ilusório, empreendendo buscas em terras desconhecidas e enfrentando feitiços maléficos, tal qual Odisseu.

O ponto de conexão entre ambas as partes é o torneio de Winchester, que reúne os mais valorosos cavaleiros da Távola Redonda e onde se desenrolam algumas aventuras dos mais célebres personagens da lenda arturiana. É precisamente aí que o elemento maravilhoso irrompe: Segurant transforma-se no Cavaleiro do Dragão e desaparece por magia.

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Graças a esse recurso narrativo, a coerência do universo do rei Artur é preservada, apesar da introdução de um novo protagonista. Ele se posiciona no cruzamento das aventuras de Lancelote, o amante da rainha Genebra – ou Guinevere –, e de Tristão, o lendário amante da rainha Isolda, que foi introduzido na Távola Redonda no século XIII. O Cavaleiro do Dragão constitui, segundo a terminologia que usamos hoje para séries e sagas, um “spin-off” (ou “paraquel”), ou seja, uma obra que se desenrola no mesmo cenário e na mesma época, narrando histórias distintas. Desaparecido durante a caça a seu dragão, Segurant é também apagado da memória coletiva pela fada Morgana. Esse elemento ficcional permite uma explicação coerente para o estranho fato de outros romances da Távola Redonda nunca mencionarem esse herói que, como um meteoro, atravessa o céu do imaginário medieval sem ter deixado qualquer rastro após sua passagem.

Uma vez que Segurant, enfeitiçado, caça seu dragão ilusório, o romance se dissipa na incompletude de sua busca: o protagonista desaparece tão misteriosamente quanto havia aparecido, e os demais cavaleiros da Távola Redonda seguem para as próprias aventuras. Então, será que o manuscrito que chegou incompleto até nós perdeu os episódios finais por um acidente histórico ou o copista os omitiu propositadamente? Ou será que o enredo, para nós inacabado, foi concebido exatamente assim, inacabável? De fato, o narrador nos revela serem vãs as tentativas de Segurant de matar o dragão: o monstro é um demônio cuja morte física seria impossível.

O dragão de Segurant é, decerto, um fantasma (phantasma, em latim), segundo a definição dos clérigos medievais, ou seja, uma imagem ilusória produzida pelos demônios para enganar os sentidos humanos. O antídoto para esse engano diabólico é o Santo Graal, o cálice que contém o sangue de Jesus Cristo, o único capaz de acabar com o feitiço de Segurant. Entretanto, curiosamente, o Santo Graal, anunciado várias vezes, nunca aparece. Teria o autor decidido deliberadamente não trazer à cena essa solução definitiva e preferido uma história sem ponto fiinal? Qualquer que seja o motivo, o fato é que as portas se encontraram abertas para as novas aventuras imaginadas até o fim da Idade Média.

Realmente, essa trama inconclusa, com o mistério que envolve seu desfecho – nunca foi escrito ou perdeu-se para sempre? –, levou alguns copistas a se apropriarem da história do herói para atribuir-lhe outras façanhas. As continuações narram outras aventuras que ocorrem durante a caça ao dragão ou após o fim do feitiço, ou esboçam o fim de sua vida no Oriente. Assim, Segurant e seu dragão atravessaram numerosos manuscritos por mais de dois séculos, experimentando reescritas divergentes, até que um copista do século XV decidisse acabar com o monstro.

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A tradução do francês antigo para o português, aqui publicada, é o resultado de uma pesquisa e reconstrução que durou mais de dez anos. Tudo começou em 2010, quando a descoberta de um manuscrito incompleto, preservado em Paris, mencionando o nome de Segurant, me conduziu a viajar na década seguinte por toda a Europa, buscando manuscritos mantidos em diversas bibliotecas do continente.

Por meio de bases de dados virtuais contendo reproduções, minha busca também pôde se estender a países como Estados Unidos e Rússia. Guiado por estudos anteriores sobre romances arturianos, por catálogos de bibliotecas ou simplesmente pelo instinto de um caçador de manuscritos, segui então os rastros do Cavaleiro do Dragão. Será que, em minha obstinada busca, eu me confundi com a própria história do herói do romance? Ele, buscando um dragão fictício, e eu, buscando fragmentos perdidos de um romance desconhecido?

Após consultar milhares de manuscritos e, pacientemente, comparar incontáveis episódios e fragmentos neles contidos, pude enfim ir desenhando uma trama contínua e coerente que podia ser seguida de um manuscrito a outro. Para isso, foram necessários 28 manuscritos principais para a reconstituição da narrativa central, além de uma centena de outros textos que apresentavam referências menos diretas.

O ponto de partida dessa busca foi um manuscrito (n. 5.229) da Biblioteca do Arsenal, em Paris, que pertenceu ao Cardeal de Richelieu: nele estão contidas as Profecias de Merlin, uma obra arturiana escrita por volta de 1272-1273 na Itália, mas em francês antigo. Trata-se de uma coleção de predições atribuídas ao mago bretão, ora do tipo didático e moral, ora referindo-se a eventos políticos da época, a catástrofes apocalípticas ou às tramas de romances arturianos. E entre tais blocos de profecias subjaz outra obra: a história contínua da vida de Segurant, o Moreno, apelidado de Cavaleiro do Dragão. Porém, o manuscrito termina bem no meio de uma frase incompleta…

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Foi a esperança de encontrar a continuação da história de Segurant que conduziu minha busca por outros exemplares nos acervos das bibliotecas. Inicialmente, minhas buscas me permitiram encontrar três desses episódios copiados, quase idênticos, em vários manuscritos, sendo os mais antigos datados do fim do século XIII. Também identifiquei outros manuscritos da mesma época que faziam referências à história de Segurant tal como fora contada pelo manuscrito da Biblioteca do Arsenal.

Diversos argumentos permitiram concluir que a versão preservada por esse manuscrito do Arsenal, que narra as primeiras aventuras do herói até a caça ao dragão, e que aqui chamaremos de “versão principal”, é a mais antiga a apresentar Segurant. Essa “versão principal” foi escrita entre 1240 e 1273, entre a redação de outros dois textos arturianos, Guiron, o Cortês e as Profecias de Merlin. É provavelmente originária do norte da Itália, talvez da região de Veneza, onde se encontram os vestígios mais antigos de seu protagonista. Embora esteja escrita em francês, língua de prestígio na Europa medieval, é possivelmente o mais antigo romance composto na Itália a chegar até nós.

Outros fragmentos por mim coletados me permitiram redesenhar os contornos desse conjunto narrativo esquecido que fora constantemente reajustado, continuado e reescrito ao longo de três séculos. Sob o título coletivo de Segurant, o Cavaleiro do Dragão (Segurant ou le Chevalier au Dragon), reuni essas versões escritas em francês antigo, todas anônimas, cuja composição se estende do século XIII ao século XV. As razões para o desaparecimento desse romance são múltiplas e permanecem parcialmente misteriosas.

Entretanto, algumas hipóteses parecem mais plausíveis para explicar essa dispersão do romance em fragmentos. Uma é o fato de que, desde o fim do século XIII, as coletâneas de episódios pareciam ter mais sucesso que os longos romances em voga até então: compiladores passaram a copiar apenas alguns episódios sem relação entre eles, de sorte que um mesmo texto, antes parte de um longo romance, passava a subsistir fragmentado em dezenas ou até centenas de manuscritos. Outra hipótese é o declínio, durante o Renascimento, da literatura arturiana, o que levou muitos antigos manuscritos medievais a serem descartados ou destruídos.

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O papel da Igreja também foi decisivo no desaparecimento desse romance. No século XVI, o Concílio de Trento incluiu as “profecias obscuras de Merlin” no Índex dos Livros Proibidos. Merlin, um profeta controverso e filho do diabo, só poderia ser portador de heresia ou, pior, de feitiçaria. Desde então, o Cavaleiro do Dragão, celebrado nas profecias do mago bretão, foi provavelmente também condenado ao fogo. Por fim, não foram apenas as chamas do auto de fé promovido pela igreja que transformariam em cinzas a história de Segurant: incêndios acidentais ou criminosos também queimariam os locais de conservação dos manuscritos nos séculos seguintes. Dessa maneira, a biblioteca da família d’Este, em Ferrara, foi atingida por incêndios durante o século XVI, e a Biblioteca Nacional de Turim foi devastada pelo fogo em 1904.

Nessas bibliotecas e arquivos menos acessados, encontravam-se, de fato, partes fragmentadas e malconservadas da história de Segurant. Em Turim, dentre manuscritos já restaurados nos depósitos e seus restos totalmente queimados, desenterrei vários tomos, ricos em iluminuras, que ainda permaneciam parcialmente legíveis, embora gravemente danificados. Em Bolonha, com a ajuda da luz ultravioleta, decifrei escritas apagadas de fragmentos de pergaminhos provenientes da biblioteca da família d’Este, que haviam sido usados como capas de registros notariais.

Dessa maneira, para além de realizar essas descobertas isoladas, meu principal desafio foi propor, com o rigor científico das ciências dos manuscritos, um todo coerente: relacionar os diversos fragmentos encontrados, de modo que eles pudessem falar e, assim, revelar a existência de um romance medieval ainda desconhecido.

(…)

Tomando uma distância maior que as obras anteriores em relação ao amor cortês e aos valores cavalheirescos, este romance enfatiza, especialmente em suas continuações, a dimensão cômica e a representação do cotidiano e do concreto. Ele já anuncia a renovação do gênero destinado a florescer na ironia de Orlando Furioso, de Ariosto, no humor dos poemas heroico-cômicos do século XVI e até, mais tarde, na paródia do Dom Quixote, de Cervantes. Hoje redescoberto, o Cavaleiro do Dragão era um dos elos perdidos da história do romance.

* Emanuele Arioli é pesquisador e medievalista francês, autor da descoberta e da reconstrução da história de Segurant, O Cavaleiro do Dragão, a ser publicado pela Editora Vestígio

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