O poeta que cantou “Carpe Diem” em nova versão brasileira
O tradutor Guilherme Gontijo Flores recria em português as 'Odes' de Horácio, clássico que, com o devido acompanhamento, pode soar a música a nossos ouvidos
Se hoje se vê a expressão em latim “Carpe Diem” tatuada na pele de tanta gente sob o sol, o crédito ao menos deveria ser dado ao poeta romano que a eternizou: Quinto Horácio Flaco, ou simplesmente Horácio (65-8 a.C.).
“(…) carpe diem, quam minimum credula postero”
Eis o verso original, bem mais conhecido que a obra onde está imerso, assim traduzido ao nosso idioma por Guilherme Gontijo Flores:
“(…) colhe este dia, ai! sem pensar nunca nos amanhãs”
Conselhos estoicos à parte, as Odes de Horácio são a pura festa das palavras. Palavras que nasceram, lá no Império Romano, para serem cantadas. E hoje revivem ao leitor brasileiro graças ao trabalho minucioso e inventivo de Gontijo Flores, publicado neste ano pela editora Autêntica.
É trabalho de formiguinha, mas feito de braços abertos à saltitante cigarra, para evocar a fábula ainda mais antiga. A recriação dos poemas consumiu mais de uma década do escritor e professor nascido em Brasília e radicado no Paraná, celebrado e premiado por verter ao nosso idioma e aos nossos tempos clássicos que vão de Safo a Rabelais – do grego ao francês d’antanho, passando pelo latim.
As Odes cantam, em métrica precisa e respeitada, as belezas e os limites da vida, celebram a natureza e imortalizam personagens mitológicos e históricos. A leitura, em ritmo e vocabulário, é complexa – ainda mais quando jogamos no time da prosa. Mas o tradutor nos dá uma mão, em suas inúmeras notas, para contextualizar, esclarecer e justificar os caminhos que tomou. Cabe a nós ficar na superfície ou mergulhar nos comentários.
Ao virar das páginas, em algum momento, não são as imagens evocadas ou as reflexões despertadas o que mais importam. Somos envolvidos pelas palavras em si – como se elas, e a música que guardam, se bastassem.
Junto ao seu grupo Pecora Loca, Gontijo Flores faz som desses versos e os leva ao palco numa experiência que, inusitada e saborosa, ainda pode nos aproximar de uma poesia criada há mais de 2 000 anos – e que segue por aí, nem que seja gravada à flor da pele.
Conversamos com o autor-tradutor, que planeja se debruçar sobre as obras completas de Horácio, a respeito dos bastidores dessa empreitada e sua apreciação pelo público brasileiro. Com a palavra, Guilherme Gontijo Flores.
Quais seriam o maior prazer e a maior dificuldade em recriar poeticamente em nossa língua as Odes de Horácio?
Talvez estejam no mesmíssimo aspecto. Para mim, a parte central do desafio era recriar aquela impressionante variedade rítmica de Horácio, e que poderia ser cantada lá em Roma no século I antes da nossa era, para que ela pudesse ser cantada aqui, em pleno século XXI, no Brasil. Então, para conseguir dar uma forma minimamente satisfatória para uma indagação que não tinha uma tradição bem estabelecida de respostas, eu tive que partir para a experimentação mesmo: em outras palavras, tentativa e erro, testar e testar até que algo funcionasse.
Essa foi a maior dificuldade, acho. E o prazer – tão grande quanto o desafio – foi perceber, a cada caso, como eu conseguiria fazer aquele ritmo antigo ser cantável agora no Brasil, do único jeito que eu poderia fazer, cantando. O que me faz lembrar aquele verso famoso de Caetano Veloso: “cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”. Eu sei a dor e a delícia de cantar versos gregos e romanos.
Como você enxerga a recepção e a apreciação da obra pelo público leitor menos versado em poesia e literatura latina? A leitura traz seus desafios, seja em vocabulário, seja nas referências históricas e mitológicas, ainda que supridas pelas suas notas.
A recepção de literatura, quase sempre, já é lenta. De poesia, ainda mais. De poesia antiga em tradução, como direi?, bom, costuma durar anos e anos. Então eu ainda não sei bem dizer nem se essa nova versão das Odes está sendo bem ou mal recebida e apreciada, fora uma ou outra pessoa que vem falar diretamente comigo sobre o impacto da leitura.
Você está certíssimo em dizer que existe um desafio complexo e completo nessa leitura, que parte do vocabulário, passa pela sintaxe e chega numa trama intricada de referências e alusões do mundo antigo. Por isso mesmo, cada vez mais, eu acredito que a nota informativa, longe de ser um oposto da tradução poética, pode ser o trampolim para a experiência poética e estética mais impactante; por isso, o livro tem tantas e tantas notas. É provavelmente a edição horaciana mais anotada em língua portuguesa (e brasileira) até hoje.
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É difícil, mas recompensador?
Aqui existe um ponto que não pode ser desconsiderado. Horácio não escreveu poesia fácil para o seu próprio tempo, não pretendia que a poesia fosse a coisa dada e simples; mas que, pelo contrário, ela exigisse do leitor e da leitora um esforço diante do desafio. Quando decidi traduzir, um ponto que estava claro para mim é que facilitar não interessaria; e não facilitar é um modo muito sincero de respeitar a intelectualidade e a sensibilidade de cada pessoa que possa pegar o livro.
As obras difíceis e complexas são como nós mesmos, e no fundo são elas que nos oferecem uma mão para chegar a um lugar diferente, que muitas vezes nem imaginávamos como possíveis em nossas vidas. Trocando em miúdos: eu acho que a apreciação das Odes será lenta mesmo; porém, se der certo, ela vai carregar algumas pessoas – talvez poucas, talvez várias – e tocá-las em pontos impensados. Posso dizer que Horácio fez isso comigo em latim, e que tento redobrar a experiência através da tradução.
As performances, como as que você realiza com seu grupo, são uma forma de aproximar ou de transpor o possível abismo entre a poesia antiga e o leitor contemporâneo?
Sim e não. E isso lá é resposta que se dê? Vou tentar me explicar. Por um lado, as performances com a Pecora Loca sempre tiveram uma pretensão muito direta de divertir as pessoas sem demandar delas qualquer tipo de erudição. Nós tocamos em universidades, faculdades e eventos acadêmicos; mas também em bares, por exemplo.
Um dos meus momentos de glória foi conversar com um desconhecido, já razoavelmente bêbado, num balcão de bar, que tinha ficado feliz e emocionado de ouvir um tanto de música que ele curtiu primeiro e só depois entendeu que eram poemas gregos e romanos. Ele simplesmente estava tocado por aquilo, sem o tradicional medo da poesia, nem o pavor generalizado pelo que as pessoas supõem que seja “poesia clássica”. Nesse sentido, a gente por vezes consegue mesmo transpor um abismo.
Por outro lado, a Pecora Loca também foi cada vez mais apostando no anacronismo deliberado. Já misturamos lira com violino e baixo elétrico, já tocamos com bodhran e tambor lakota, hoje usamos guitarras distorcidas e bateria, às vezes sons de midi controlados por teclado etc. Já fizemos também misturas de Safo com Nirvana, Anacreonte com Roberto Carlos, samba com Simônides etc.
Quer dizer, ninguém que nos escuta sente que estaria ouvindo algo que vem direto do passado; e isso porque está tudo misturado no presente. Nessas horas, mais do que transpor um abismo, acho que a gente quer é inventar modos inusitados de viver tradições que estão vivas: a gente traduz no presente e performa no presente, ao vivo e para os vivos. Pode ser uma porta de entrada para quem quiser saber mais? Claro que pode. Mas eu diria que a ênfase está mesmo na experiência imediata da performance, a cada vez que ela acontece.