O medo também constrói? Uma nova voz na literatura latino-americana
Escritora Mónica Ojeda cria, em contos e romance, ambiente em que as violências reais se misturam com uma espécie de horror cósmico
A equatoriana Mónica Ojeda, exaltada como uma das principais vozes da nova geração de escritores de língua espanhola, é fã e discípula de uma corrente literária que poderíamos chamar de terror existencial. Constrói (e cultua) um universo cuja atmosfera tensa flerta entre o devaneio e a realidade, e a violência espreita, sutil ou mais abertamente, a qualquer instante.
Em ambientes bastante diferentes e com outros tipos de monstros, a autora latino-americana mantém acesas a tradição e a influência de H.P. Lovecraft, o genial e excêntrico escritor americano que, ao criar uma mitologia própria, revolucionou o que se convencionou chamar de literatura de horror. Mas, em vez das casas, colinas e pântanos e suas criaturas assustadoras no meio dos Estados Unidos, com Mónica Ojeda o cenário pode ser uma escola ou um casebre com vista às montanhas andinas.
O leitor brasileiro poderá penetrar nesse mundo, em que dilemas cotidianos e aspectos culturais serão até familiares, no romance Mandíbula (Autêntica), primeira obra da equatoriana lançada no país. Nela, acompanhamos, em múltiplas vozes, um grupo de adolescentes e professores de um colégio de elite que, entre laços de amizade e rompantes de violência, vive uma rotina marcada por bullying, angústia psíquica e desprezo social. Um ambiente voraz que produz vítimas e vinganças.
Mandíbula
Em linguagem crua, por vezes cruel, Mónica expõe os sofrimentos de uma nova geração endinheirada que está se descobrindo, na carne e na mente, e continuamente testando seus limites. E não é à toa que uma dessas personagens, fascinada pelo terror cósmico de Lovecraft, assina, a título de lição de casa, um ensaio sobre o autor – um dos pontos altos do romance.
Agora, a escritora equatoriana volta às livrarias nacionais com o volume de contos Voladoras, também pela Editora Autêntica, em que os elementos da paisagem e do folclore de seu país pedem passagem. O medo, contudo, segue à espreita. O medo do real e do irreal, cujas fronteiras tantas vezes estão diluídas.
Será que o medo também constrói? Ler essa autora de 35 anos, uma das atrações da Festa Literária de Paraty (Flip) de 2023, nos ajuda a entender.
Voladoras
Com a palavra, Mónica Ojeda.
No seu livro de contos, a gente nota uma influência do folclore e de lendas locais nas narrativas. Quanto essa mitologia moldou sua formação como leitora e escritora?
Pouco, na realidade, já que sou da costa do país e essas histórias se passam na região de serra e montanha. Além disso, tive uma educação bastante ocidentalizada e branqueada, que me negou a possibilidade de conhecer em profundidade o mundo andino, com toda sua história e sua maneira de narrar. Meu interesse pelo elemento andino, por suas paisagens e símbolos, seu jeito de ver e pensar, veio depois. Eu tive de investigá-lo. Já faz um tempo que me fascinam as mitologias de distintas partes do mundo. Nelas podemos encontrar a estrutura do nosso pensamento e também tudo aquilo que desejamos ou tememos.
Seus livros – e isso é notável em Mandíbula – expõem alguns dos maiores sofrimentos psíquicos de uma geração. O que a aflige mais e procura verter aos seus textos?
Escrevo para pensar o que, de outro modo, seria impensável. A escrita me permite ser corajosa e olhar para as zonas escuras e difíceis. Escrevendo me transformo: posso criar um tempo distinto, uma sensibilidade que antes não existia em mim. Costumo pensar no medo e na violência porque somente através da escrita consigo ver a beleza que existe na fragilidade humana.
Acredita que a literatura, inclusive o gênero terror, nos ajuda a reconhecer e a enfrentar nossos medos e temores existenciais?
Uma personagem de Mandíbula diz que é preciso entrar no medo. E acredito nisso: só entrando no medo podemos entendê-lo e impedir que ele nos domine. Fugir não é uma possibilidade. Além disso, o medo sempre nos abre a porta a uma revelação. Tanto é que, às vezes, desejamos aquilo que permanece do outro lado do medo, e isso que está no outro lado é nada mais nada menos que nós mesmos.