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Pequenos diálogos para desbravar grandes obras & ideias − e cuidar melhor de si e do mundo

O homem que está no começo e no fim de todo o pensamento ocidental

Clássico de Platão ganha nova edição em linguagem voltada ao leitor brasileiro dos nossos tempos. Professor elucida sua tradução e a imortalidade da obra

Por Diogo Sponchiato Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 4 nov 2025, 11h30

Uma das características mais peculiares, instigantes e desafiadoras da filosofia é que, ao contrário de outros campos do conhecimento, autores que viveram há mais de 2 000 anos continuam influenciando os debates e dialogando com os contemporâneos. E um nome incontornável no percurso de idas e vindas das ideias é Platão (427-347 a.C.).

Platão, na verdade, era seu apelido – e faz referência a um termo grego que queria dizer “robusto”. Mas ele não cravou sua assinatura nas páginas da história pelos ombros largos, claro. Nascido Arístocles, veio ao mundo em Atenas no dia em que supostamente o deus Apolo foi concebido, segundo o biógrafo Diógenes Laércio em Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres. Sua linhagem remontaria, ainda de acordo com o cronista, aos descendentes de outra divindade, Poseidon.

Deixando o Olimpo de lado, o fato é que Platão foi o maior discípulo do luminar da filosofia grega, Sócrates, eternizando os ensinamentos do mestre por meio de suas obras e da fundação de uma famosa escola em Atenas, a Academia. Não é exagero afirmar que plantou, assim, as sementes do que hoje entendemos como um dos primeiros sistemas filosóficos.

Pois as ideias platônicas – e ele concebeu todo um mundo das Ideias, assim mesmo, com a reverência da inicial maiúscula – tornaram-se, de certo modo, imortais, assim como imortal seria a alma, em sua visão. Fazendo do diálogo a forma soberana de seus textos, o pensador investigou e registrou, nos passos do mestre, conflitos e princípios que vão da ética à política, passando pela metafísica – sempre construindo seus argumentos com as peças e a cola da lógica.

Agora o leitor brasileiro pode conferir a longevidade do pensador em uma novíssima tradução de um de seus livros mais poderosos – ainda que menos conhecido do que clássicos como A República. Falamos de Fédon ou Sobre A Alma, vertido do grego antigo para uma linguagem que conversa com a nossa era pelo professor Gabriele Cornelli, que assina também um precioso guia de viagem pela obra e nada mais nada menos que 394 notas explicativas.

Fédon ou Sobre a alma

fedon

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Publicado pela Penguin-Companhia, Fédon – o título se refere a um dos discípulos de Sócrates que presencia as últimas horas do filósofo e as relata a seus camaradas – acompanha os momentos derradeiros do mestre de Platão, condenado à morte pela cidade de Atenas, um registro que por si só já seria proveitoso como peça histórica e literária.

Mas esse é também o pano de fundo das discussões e lições que Sócrates (e Platão) legará aos seus – e ao mundo. E entre as principais está o debate acerca da imortalidade da alma (e das ideias) e do que viria depois da morte do corpo. É nesse entrelace entre a experiência real e a caça de respostas para dúvidas até hoje não plenamente sanadas que o diálogo revela o propósito máximo da filosofia – esse quebra-cabeça milenar em busca de conhecimento e felicidade.

Uma busca perpétua, enquanto os seres humanos pisarem a Terra e sondarem o que encontrarão do outro lado, quando, quem sabe, a alma entrar em comunhão com o núcleo das ideias platônicas… Mas aí é melhor passarmos o bastão a quem realmente entende, o tradutor e professor titular de filosofia antiga da Universidade de Brasília.

Com a palavra, Gabriele Cornelli.

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meu retrato preto em alta resolução
O professor Gabriele Cornelli, responsável pela tradução, apresentação e notas da nova edição de ‘Fédon’ (Foto: Acervo/Reprodução)

Por que é impossível falar de filosofia ocidental sem falar de Platão?
Platão é claramente o começo e, de certa forma, o fim de todo o pensamento ocidental. Em sua obra encontram-se os temas fundamentais da vida humana, os porquês que ainda estão movendo homens e mulheres a buscar respostas, soluções, conforto na filosofia. Platão faz suas personagens (sim, porque ele mesmo não escreve nada em primeira pessoa) se moverem nos palcos da história de Atenas em um período especialmente atribulado, aquele do final do século 5 a.EC, e trocarem ideias sobre o sentido da vida, sobre o que há de acertado em nossas palavras quando descrevem o mundo, sobre o que é belo, qual é a melhor forma de organizar a vida social e política, como um ser humano deve ser relacionar com a religião, entre outras coisas.

Mas, se há algo que pode resumir bem a filosofia de Platão, essa filosofia que dá seus primeiros passos, ao mesmo tempo frágeis e surpreendentemente vigorosos, é que a filosofia em diálogo pretende falar de como sermos felizes, sozinhos, sim, mas especialmente juntos. A felicidade, nada mais, nada menos, é o fim de toda a filosofia ocidental (e não somente). É nesse sentido que Platão é também o fim da filosofia. Nada mais importante é buscado nela desde então, nada mais importante será afinal, com toda probabilidade.

Qual seria a mensagem ou o ensinamento de Fédon que persiste mais atual nestes nossos tempos? Um acontecimento dramático serve de ponto de partida para este clássico central à cultura e à filosofia grega: Sócrates está às vésperas de sua morte, após ter sido condenado a beber veneno. Platão, seu discípulo, recria esse momento angustiante e belo em uma série de discussões que abrangem temas éticos, políticos, metafísicos e de teoria do conhecimento. No palco desse último dia, Sócrates se move, encontra familiares e amigos, prepara seu corpo para a morte, ri, se permite gestos de carinho, fica longamente em silêncio, e, finalmente, toma o veneno.

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“Acreditamos que a morte seja algo?” Essa é a pergunta com que Sócrates inicia sua discussão com os amigos, em seu último dia no corredor da morte. Sócrates fala da morte, como era de se esperar para o momento. Ou melhor, fala da vida após a morte. Sócrates quer provar que a morte não é o fim para um ser humano ou algo que um filósofo deva temer. Contudo, no Fédon, a morte não é somente discutida. Ela é também, e sobretudo, representada. O corpo de Sócrates que morre embaralha o discurso filosófico. A lógica dos argumentos esmaece, por vezes, na frente do desejo de persuadir e consolar os amigos. Premissas indemonstradas sustentam com dificuldade provas circulares.

Os mitos vêm em socorro à fragilidade das provas e exorcizam o medo infantil que habita em cada um. Suas imagens, sua poesia, renovam a esperança de que haverá justiça no além, de que há uma continuidade entre este mundo e aquele, entre esta vida e a outra vida, depois da morte. A promessa é que todo o bem realizado, uma vida dedicada à filosofia e aos outros, valeu. O filósofo, tão desprezado na Atenas de seu tempo, viverá para sempre feliz. E nisso “é belo acreditar”.

Diante do retumbante avançar da ciência e da tecnologia, em que medida o mundo das ideias e das almas de Platão ainda se mantém de pé? Em outras palavras, como falar da “imortalidade da alma” na era da IA?
O desejo pela continuidade de nossa experiência e sensações (algo como uma imortalidade) e a vontade de acertar finalmente o que é verdadeiro, de uma vez por todas e para todos (que é uma maneira de pensar no investimento de Platão nas ideias), acompanham o desenvolvimento do Ocidente e de suas tecnologias provavelmente desde as épocas mais originárias. Esse desejo, essa esperança de que algo do futuro possa ser melhor do que o presente, é o que sempre moveu a ciência ocidental. Nesse sentido, portanto, não há nada de particularmente novo nas tecnologias que utilizam modelos de linguagem.

Platão e a filosofia em geral têm tido muito a dizer sobre o desejo que move a ciência e sobre os riscos da tecnologia. Há uma grande preocupação em Platão com relação ao esvaziamento do sentido das palavras e sobre o uso da linguagem para manipular, por exemplo, ao ponto de realidade e ficção se confundirem dramaticamente. No próprio Fédon, Platão alerta para os riscos da “misologia”, um termo inventado por ele, que significa o risco de “odiar as palavras”, de rejeitar todos os discursos como falsos, por termos perdido completamente o critério para distinguir o que é real e o que é mentira. Soa familiar em tempos de IA?

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O diálogo de Platão, tão bem apresentado pelo senhor na introdução, oferece como poucos um íntimo retrato de Sócrates. O que precisamos aprender e adotar com a postura do filósofo?
Sócrates, mesmo em suas últimas horas no corredor da morte, não desiste de dialogar com seus amigos sobre aquilo que mais importa. A morte, sim, mas também a vida, a música, a política, a linguagem, as histórias que falam de prazer e dor, de como atravessar a vida aceitando seus riscos, sem medo. Sócrates é representado como um herói, de certa forma, mas um herói de nosso tempo.

Alguém que aposta em uma vida que não se deixa viver, mas que assume suas rédeas, que se pensa até o fim, mesmo em suas contradições. E se mantém em uma atitude aberta de diálogo, com maturidade psíquica e ética exemplares. Resiste ao desejo de pôr fim à dor que cada um sente frente à incerteza da vida e nos regala uma imagem forte, aquela de uma jangada durante a tempestade. Sócrates convida, assim, cada um de nós a confiar no “melhor dos discursos humanos, embarcando nele como que sobre uma jangada, e arriscar-se a velejar pela vida”.

Qual a contribuição desta nova tradução de uma obra tão central para o pensamento ocidental?Platão é, em última análise, intraduzível. No sentido que dá ao termo Barbara Cassin: intraduzível “não é o que não traduzimos, mas o que nunca deixamos de traduzir e, portanto, também o que nunca deixamos de não traduzir”. O ofício da tradução de textos gregos é um equilíbrio incerto entre fidelidade e liberdade. O resultado é sempre provisório, condenado a uma obsolescência programada. Por esse motivo, toda geração deve retraduzir seus clássicos, para que estes possam reviver junto com essa nova geração.

Mas há algo mais preciso que me fez querer fazer esta nova tradução. Ela diverge de muitos projetos editoriais de tradução, não somente em língua portuguesa, da obra platônica. O problema é que a opção por uma linguagem “culta” se dá por efeito do que o grande linguista inglês, John Lyons, chamou de “falácia clássica”, que remonta já aos gramáticos alexandrinos. Por trás dela há dois pressupostos indemonstrados: a) que as línguas mudam para pior, de maneira que a língua escrita, por conservar ainda uma língua já não mais corrompida pela mudança, seria inerentemente mais pura, e consequentemente melhor, do que aquela atual; b) que a língua falada é sempre mais caótica e desregrada do que a língua escrita; portanto, a esta inferior em termos de elegância e correção.

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Há também nesta visão algo de uma “polarização maniqueísta”, pela qual o polo positivo é sempre reservado ao texto escrito, enquanto o negativo à oralidade. Inspiradas por esta falácia, portanto, muitas traduções de Platão acabam por reproduzir uma “ideologia linguística preconceituosa”. Sem uma tomada de consciência do preconceito inerente aos usos da língua em todo projeto de tradução, a tradução é sempre feita, com alguma sorte, para duas ou três gerações anteriores. E isso não diz respeito a más escolhas editoriais. Há algo de perverso em uma operação deste tipo: passa-se a impressão de que Platão, e talvez os clássicos em geral, não falem a língua desta geração, não são gente como a gente.

Esse tipo de tradução nos converte em estrangeiros, irremediavelmente outros, com relação aos clássicos. A mensagem que se recebe é que é impossível fazer filosofia a não ser em grego, ou alemão. Em língua portuguesa, irremediavelmente inadequada para esse fim, o mais próximo que poderíamos chegar só seria alcançado pela maneira como falam certas elites, de ascendência europeia, e que ainda ocupam em sua maioria os lugares intelectuais e acadêmicos de maior destaque. Sim, porque ao final é disso que se trata: de uma nem tão sutil, nem tão implícita, forma de supremacismo, que assume as conotações de um racismo linguístico.

É duro de admitir, mas as traduções de Platão arriscam contribuir com tudo isso, a menos que não reconheçam a ideologia que informa grande parte de nosso trabalho intelectual. Assim, decidi traduzir Platão o mais possível com as palavras desta geração, na língua brasileira, que “tirada das mãos dos homens europeus tem formado gerações de mestiços, de caboclos, pequenos “bárbaros” que podiam se apossar daquela língua sem grandes considerações por Lisboa”, como escreve Caetano Galindo. E se apossar de Platão, chamando ele de seu, em suas palavras.

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