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Pequenos diálogos para desbravar grandes obras & ideias − e cuidar melhor de si e do mundo
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O filósofo mais mal compreendido e deturpado da história

Ele é Nietzsche, pensador alemão cuja obra suscitou polêmicas e apropriações que são examinadas e desconstruídas em livro de professora brasileira

Por Diogo Sponchiato Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 9 Maio 2024, 12h16 - Publicado em 17 abr 2024, 11h27

O profeta do nazismo, o arauto dos niilistas e anarquistas, o homem que matou Deus, o louco iconoclasta, o Anticristo em carne e osso… Poucos filósofos receberam tantos epítetos e apelidos, por vezes nada lisonjeiros, quanto Friedrich Nietzsche. Poucos foram tão mal interpretados – de forma deliberada ou não – quanto o autor de Assim Falou Zaratustra e outros clássicos do pensamento ocidental. 

A vida e a obra de Nietzsche (1844-1900) suscitam, desde o século XIX, um sem-fim de debates e querelas em campos tão diversos como a religião, a ciência, a estética e os estudos sociais. O famoso bigodudo alemão, dono de um estilo sui generis, peitou ideias canônicas e botou a boca no mundo para dinamitar moralismos e estimular a humanidade a ir além das noções de bem e mal. 

Poucos pensadores forçaram o homem a se superar intelectual e espiritualmente. E, não à toa, esse princípio seria apropriado por nazistas e fascistas para louvar uma suposta raça ou pátria superior.

Nietzsche é o filósofo da suspeita, o sujeito que questionou tudo e todos sem dó nem piedade, influenciando e aterrorizando inúmeras escolas de pensamento. Há quem o coloque ao lado de Marx e Freud na tríade de luminares que, acolhidos por discípulos e atacados pelos críticos, mudaria a visão de mundo no Ocidente. 

Nietzsche, Filósofo da Suspeita é o título do livro da maior especialista na obra do alemão no Brasil, a professora Scarlett Marton. Publicado pela Editora Autêntica, ele nos guia pela produção do pensador tendo como pano de fundo as (más) interpretações, usos e preconceitos que ainda hoje estão colados às suas ideias.

Nietzsche, filósofo da suspeita

filosofo-suspeita

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O filósofo da suspeita foi alvo, ele mesmo, de inúmeras acusações e julgamentos, muitos deles baseados em leituras enviesadas ou indiretas de seus livros. É preciso beber Nietzsche da fonte, mas, de preferência, com a bússola oferecida por quem se dedica há décadas a decifrar sua obra. Por isso as pouco mais de 140 páginas redigidas, de forma clara e didática, pela professora Scarlett são valiosas. 

“Não cessam de proliferar os que se servem de Nietzsche para falar o que querem, sem permitir que ele fale por si mesmo. De fato, nenhum outro pensador suscitou, seja pela sua vida, seja pelas suas ideias, tanto interesse e curiosidade”, diz a docente da USP.

Nesta entrevista, ela examina a recepção dos conceitos e mensagens do filósofo – úteis inclusive para conter a epidemia de fake news – e sugere um itinerário para desbravar seus textos. Com a palavra, a autora.

+ LEIA TAMBÉM: O pensador que expôs o lado obscuro do progresso

Se a senhora pudesse fazer um balanço, diria que até hoje Nietzsche foi mais mal compreendido ou deliberadamente mal interpretado?

Não hesito em afirmar que seu pensamento foi mal compreendido, mas de igual modo deliberadamente mal interpretado. A Nietzsche não se pode aplicar as mesmas técnicas de análise que comumente aplicamos a outros autores. A ele não se pode fazer exigências análogas às que se faz a seus pares. Em suma: não se pode lê-lo como se lê a maioria dos filósofos. Não é o caso de esperar de seus textos um raciocínio linear, que distinguiria com clareza o sim e o não. Tampouco é o caso de exigir deles longas cadeias argumentativas e minuciosas demonstrações.

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Bem sabemos que é indispensável a quem se dispõe a ler os textos de Nietzsche ater-se aos diversos procedimentos de que ele lança mão. Para dar-se conta de sua reflexão, o leitor tem de frequentar sua obra, explorar suas tramas conceituais, atentar para a pluralidade de seus estilos, conviver com suas estratégias. Esses dois últimos pontos merecem atenção. Pois, dada a sua riqueza estratégica e diversidade estilística, o pensamento nietzschiano presta-se a aproximações distintas e variadas.

Fino estrategista, Nietzsche não hesita, num primeiro momento, em converter em aliados seus adversários. Dando a entender que assume as posições que advogam, evidencia os pontos vulneráveis daqueles que, então, se dispõe a questionar; contesta, por fim, estes que, de início, tomara por cúmplices. Dependendo dos alvos de ataque que elege e dos interlocutores que escolhe, a uma mesma proposição confere um tom assertivo ou irônico, dubitativo ou jocoso.

É preciso explorar não apenas o que ele diz, mas sobretudo como ele diz, a quem se endereça e contra quem se dirige. Por outro lado, se perseguir uma ideia é abandonar várias outras pelo caminho, o que é o aforismo – um de seus modos de expressão privilegiados – senão a possibilidade de perseguir uma mesma ideia a partir de diversos ângulos de visão? Dependendo da perspectiva adotada, a mesma ideia acaba por assumir diferentes sentidos.

Mas também não cessam de proliferar os que se servem de Nietzsche para falar o que querem, sem permitir que ele fale por si mesmo. De fato, nenhum outro pensador suscitou, seja pela sua vida, seja pelas suas ideias, tanto interesse e curiosidade. Antes de tudo, Nietzsche não queria ser confundido. Para sua surpresa e horror, tanto antissemitas quanto anarquistas se diziam seus adeptos. Ao longo de décadas, ele será evocado por socialistas, nazistas e fascistas, cristãos, judeus e ateus. Pensadores e literatos, jornalistas e homens políticos terão nele um ponto de referência, atacando ou defendendo suas ideias, reivindicando ou exorcizando seu pensamento.

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Alguns fizeram dele o precursor do nazismo e outros, um pensador dos mais revolucionários. Alguns o encararam como o defensor do ateísmo e outros, como um cristão ressentido. Há os que o consideraram o crítico da ideologia, no sentido marxista da palavra, e os que o viram como o inspirador da psicanálise. Há os que o tomaram por arauto do irracionalismo e os que o perceberam como o fundador de uma nova seita, o guru dos tempos modernos.

Contudo, é preciso insistir que as leituras de sua obra podem ser corretas ou erradas. Há leituras que procuram fazer jus aos seus escritos e as que não hesitam em distorcê-los. O critério que se impõe para distinguir entre umas e outras consiste em buscar compreender o autor como ele mesmo se compreendeu – nem mais nem menos.

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A professora de filosofia Scarlett Marton em evento em Campinas (Foto: Wikimedia Commons/Reprodução)

Entre tantas ideias e mensagens do filósofo, qual julga a mais urgente para os nossos tempos?

A meu ver, uma das ideias de Nietzsche mais importantes para os dias de hoje consiste precisamente na prática da suspeita. Nietzsche nos convida a pôr em questão nossa maneira de pensar, agir e sentir. Desestabiliza nossa lógica, nosso modo habitual de pensar, quando tenta implodir os dualismos, fazendo ver que, ao contrário do que julgamos, a verdade não é necessariamente o oposto do erro.

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Desafia nosso modo costumeiro de agir quando critica de forma contundente os valores que entre nós ainda vigem, mostrando que, ao contrário do que supomos, o bem nem sempre contribui para o prosperar da humanidade e o mal, para a sua degeneração. Provoca nosso modo usual de sentir, quando ataca com determinação a religião cristã e a moral do ressentimento, tornando evidente que, ao contrário do que acreditamos, nós, seres humanos, nada temos de divino.

Nestes nossos tempos, recorrendo à prática da suspeita tão bem exercida por Nietzsche, precisamos com urgência desconfiar do que nos é apresentado como verdadeiro; temos de ousar questionar o que nos é oferecido como sendo evidente. É o recurso de que dispomos para combater as fake news.

+ LEIA TAMBÉM: O sucesso atemporal do imperador-filósofo

A senhora defende que a gente conheça Nietzsche bebendo de suas fontes. Que itinerário recomendaria para desbravar as obras do pensador?

Recomendo que comece pelo livro Nietzsche – Obras incompletas, publicado na coleção “Os Pensadores”. A tradução primorosa de Rubens Torres Rodrigues Filho faz jus não só às ideias do filósofo como ao seu estilo. O leitor encontrará nessa obra uma seleção passagens dos livros publicados e dos fragmentos póstumos de Nietzsche, desde O Nascimento da Tragédia até Ecce Homo. Terá assim uma visão geral do que ele escreveu, dos temas que abordou, dos assuntos de que tratou. Poderá, então, escolher o caminho a seguir.

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Há uma tendência, que data de muito tempo, de eleger como primeira leitura Assim falava Zaratustra. A meu ver, esse é um grande equívoco, porque, dos livros de Nietzsche, Zaratustra é, sem sombra de dúvida, o mais hermético. Nietzsche, ele mesmo, afirmou que, em Para além de Bem e Mal, veio esclarecer as ideias presentes no seu Zaratustra, assim como, na Genealogia da Moral, procurou ilustrar as ideias de Para além de Bem e Mal. Então, valeria a pena privilegiar a leitura desses dois últimos livros.

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