O dândi tropical que flanou até o morro e inovou a crônica à brasileira
Homenageado da Flip, João do Rio ganha nova edição de volume de crônicas - um saboroso panorama de suas contribuições ao jornalismo e à literatura
Não há fronteiras para João do Rio. Ele pula o muro da casa para a rua, perambula do salão de elite até a favela em formação, transita entre o jornalismo e a literatura… Sempre com o olhar cirúrgico, o faro para causos e mudanças sociais e o gingado único que imprime em seus textos.
Foi com suas crônicas, publicadas em jornais no despertar do século XX, que João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto (1881-1921) inscreveu seu nome – ou melhor, seu sucinto pseudônimo – na história das letras brasileiras. Dândi que não teve aversão a sujar os fraques e sapatos pelos subúrbios, sem deixar de frequentar os bailes e encontros dos poderosos, o homenageado da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) de 2024 modernizou e consolidou o gênero, chegando a transcender sua natureza efêmera.
É o que constatamos, com imenso prazer, ao flanar pelas crônicas de Gente Às Janelas, o novo volume de peças do autor, com direito à capa dura, que sai pela editora Carambaia.
Gente às janelas
A seleta, a cargo da editora Graziella Beting, que tem mestrado e doutorado sobre a obra de João do Rio, reúne os instantâneos tirados pelo autor numa cidade que se transforma, ganhando avenidas largas e comunidades nos morros, e na qual convivem partidas de um tal de foot-ball e rinhas de galo, chás da tarde pomposos e terreiros de umbanda, dores e amores de um povo que pega trem e se delicia com palavras gringas.
“Crônicas não foram feitas para durar”, escreve Graziella na introdução do livro. Digamos que, drenando a alma encantadora das ruas e confundindo deliberadamente crônica com conto – e vice-versa -, João do Rio subverteu até a essência do gênero. Não é por menos que, como explica a editora especialista no autor, ele deixa um legado à imprensa e à literatura nacionais – e agora ganha uma Flip para chamar de sua.
Com a palavra, Graziella Betting.
Apesar de termos grandes cronistas e de grandes escritores terem praticado textos dessas natureza, acredita que a crônica ainda sofre com certo preconceito de ser um gênero literário menor?
Antonio Candido tem aquela frase famosa, em um dos raros textos em que ele trata da crônica – A vida ao rés do chão -, sobre ela ser, de fato, um gênero menor, e que isso seria ótimo, pois assim ela fica perto de nós. Acho que é mais ou menos por aí. A crônica segue sendo bastante lida – e arrisco concordar com os que dizem que é um dos gêneros preferidos do leitor brasileiro.
Mas, no âmbito universitário ou da crítica literária, ela ainda é vista como um gênero menor – e acho até compreensível, pois existe uma dificuldade em abordá-la dentro das categorias de estudo e análise habituais. Isso porque a crônica é, por sua natureza, um gênero híbrido. E, acima de tudo, porque crônicas não foram, por princípio, feitas para durar. São textos breves, por natureza efêmeros, escritos geralmente de um dia para outro, pra sair em jornal e não em livro, com um lastro na realidade do noticiário e outro na ficção – em doses bem variadas dessa combinação.
Qual foi a principal contribuição de João do Rio à arte da crônica?
João do Rio foi essencial no processo de consolidação desse gênero lá no início do século XX. Quando, aos 18 anos, em 1899, ele começou a trabalhar, os jornais funcionavam como uma espécie de tribuna de opinião, e suas colunas eram divididas entre diatribes de caráter político e textos rebuscados nascidos da pena de literatos. A grande inovação dele foi abandonar o gabinete de trabalho (hoje diríamos “redação”) e ir para a rua – “flanar”, como ele dizia, imitando os escritores franceses.
Percorreu vielas e becos, falou com toda a gente, ouviu histórias, percorreu lugares onde o jornalismo não costumava pôr o pé. Voltou e contou tudo o que viu num texto híbrido, com técnicas que eram novidade para o jornalismo praticado até então – reportagem E entrevista ainda eram palavras inexistentes no vocabulário relacionado à imprensa da época -, misturadas a recursos literários.
Assim, narrava o que via, mas fazia uso de personagens e cenas fictícias, acrescentava um pouco de invenção, estilo e construções próprias da literatura. Estavam dadas as bases do que, depois de muita tinta rolar, seria chamado de crônica moderna. Ou, como dizem alguns, crônica à brasileira.
João do Rio rompe muitas fronteiras, como você assinala no livro – entre jornalismo e literatura, entre a alta cultura e o registro popular, entre a casa da elite e o morro, entre o conto e a crônica etc. Reside aí um dos maiores valores de sua obra?
Sem dúvida. Nisso ele foi único. Se o caminho da crônica já era de alguma forma explorado desde José de Alencar, Machado de Assis ou Lima Barreto – apenas para citar os que ficaram mais conhecidos –, nenhum deles circulou, como João do Rio, com esse olhar de repórter, nesses mundos tão diversos.
Com o mesmo fraque que usava para frequentar os five o’clock teas e descrever a rotina da alta sociedade nos ambientes luxuosos da Avenida Central, João do Rio percorria os subterrâneos da cidade para depois contar que tinha gente que vivia de caçar ratos, testemunhar a precariedade da moradia de pessoas expulsas do centro que começavam a se instalar nos morros, a difícil condição de trabalho dos estivadores do porto etc.
Do ponto de vista da forma, vale destacar que João do Rio ficava extremamente atento às tendências, movimentos e até modismos do universo literário, da dramaturgia e dos jornais e revistas estrangeiros. Inspirando-se, imitando e até copiando descaradamente certos autores, ele usou as colunas da imprensa brasileira como laboratório mesmo. E daí saiu muita inovação, muitas delas adotadas até hoje.
Enxerga algum herdeiro de João do Rio na literatura ou nos jornais brasileiros hoje?
Difícil pensar em alguém que contemple suas tantas facetas. Uma figura tão rica, polêmica e prolífica como ele, um dândi tropical, repórter pioneiro, que denunciava os miseráveis e ao mesmo tempo bajulava e satirizava os ricos e poderosos, é coisa rara e inimitável.
Acho também que as inovações que ele trouxe à imprensa e literatura brasileiras acabaram derivando em coisas diversas. Por um lado, podemos dizer que desembocaram na reportagem, no jornalismo investigativo, aquele repórter que vai pra rua sem necessariamente ter uma pauta para descobrir ali sobre o que vai escrever. Coisa cada vez mais rara, como sabemos.
De outro, se pensarmos nele como aquele cronista do instinto observador, do olhar atento para as miudezas do cotidiano, que olha o noticiário e tira dali um mote para montar um texto que mistura crítica social, ironia, política, cultura, humor e leveza, daí acho que a lista é grande. Mas cito o meu preferido, agora que eu saiba aposentado, mas cuja genialidade acho que deixará para a nossa literatura e nossa história um legado tão grande quanto o de João do Rio: Luis Fernando Verissimo.