Namorados: Assine Digital Completo por 1,99
Imagem Blog

Conta-Gotas

Por Diogo Sponchiato Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO
Pequenos diálogos para desbravar grandes obras & ideias − e cuidar melhor de si e do mundo

‘O Alzheimer altera também o cérebro do cuidador’

Poucas pessoas se debruçam tanto sobre os desafios dos cuidadores de pessoas com demência como Dasha Kiper, autora do livro 'Viagens a Terras Inimagináveis'

Por Diogo Sponchiato Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 29 Maio 2025, 22h24 - Publicado em 29 Maio 2025, 16h32

Não nascemos preparados para encarar e entender um cérebro com Alzheimer. E é devido a esse lapso cognitivo e emocional que inúmeras famílias desmoronam quando se vêem tragadas pela rotina de cuidados com um ente querido diagnosticado com uma demência.

Esse é um dos principais insights da americana Dasha Kiper em Viagens a Terras Inimagináveis, recém-publicado pela editora Todavia. Diferentemente de inúmeras obras que focam nas vítimas do Alzheimer, seu livro é uma joia rara por mergulhar na desafiadora relação entre o cérebro doente e aquele que precisa prestar socorro a ele – o do cuidador.

E por que isso importa tanto? Porque ainda não falamos o suficiente sobre cuidar de quem cuida. Um trabalho – pois, como frisa Dasha, também se trata de trabalho – que na maioria das vezes é assumido por um familiar.

A imersão de Kiper pelo tema parte de sua própria experiência como cuidadora de um senhor de 90 anos e se ramifica a partir do seu trabalho de suporte a outros cuidadores, hoje viabilizado sob a associação The Caring Kind.

Tem o mérito de se ancorar nas descobertas da neurociência sem abrir mão dos sensíveis e complicados fatores humanos que permeiam a relação paciente-cuidador – no melhor estilo de autores como o neurologista Oliver Sacks, de quem bebe inclusive o título do livro.

Nessa jornada, compartilha histórias reais que acompanhou, sempre marcadas pelo cabo de guerra entre o estresse e o amor de um parceiro ou filho, entrelaçadas a aprendizados sugeridos por grandes nomes da literatura (de Borges a Tchekov).

Viagens a terras inimagináveis

viagens-terras-inimaginaveis

Continua após a publicidade

Não se trata de um manual do cuidador. Pelo contrário, essa é uma obra que parte da dificuldade intrínseca de compreendermos como opera uma mente tomada pela demência para propor reflexões, apoios e caminhos de interação e acolhimento no dia a dia.

“Quando pensamos no Alzheimer, geralmente pensamos que ele apaga o eu. Mas o que acontece na maioria dos casos é que o eu se divide em diferentes eus; alguns deles reconhecemos, outros, não”, escreve Kiper.

Diante do avanço do Alzheimer e de outras demências pelo globo – projeta-se um aumento de 10 milhões de novos casos por ano na esteira do envelhecimento populacional -, as discussões e propostas da autora não podem ser esquecidas.

Com a palavra, Dasha Kiper.

dasha-kiper
Americana nascida na Rússia, Dasha Kiper se dedica à causa dos cuidadores (Foto: Todavia/Divulgação)
Continua após a publicidade

Levando em consideração sua experiência com o universo da demência, qual seria o maior desafio para um cuidador hoje?

Existem tantos desafios que é difícil apontar o maior. Mas acho que devemos começar com algo enganosamente simples: o desafio de fazer com que a sociedade e os próprios cuidadores reconheçam que cuidar é um trabalho. Pode parecer óbvio, mas tendemos a desvalorizar o trabalho envolvido no cuidado porque somos condicionados a vê-lo como um serviço que devemos às nossas famílias. Cuidar não é apenas um trabalho desafiador; é também perigoso.

Quando uma doença corrói a capacidade de alguém pensar, lembrar, raciocinar, tomar decisões, usar o julgamento e se envolver nas atividades simples da vida diária, cabe aos cuidadores funcionar por duas pessoas. Isso, no entanto, é simplesmente insustentável. Não é de surpreender que cuidadores de pessoas com demência apresentem níveis muito altos de estresse crônico, o que afeta todos os aspectos do seu bem-estar. De fato, estudos mostram que cuidadores sofrem desproporcionalmente com custos para sua saúde física, mental e cognitiva.

Você acredita que a criação de políticas públicas e cursos para cuidadores ajudaria a mudar essa difícil realidade?

Sim. Como sociedade, não queremos lidar com os problemas da velhice, especialmente os transtornos demenciais. A demência nos causa profundo desconforto. Nos assusta e, como não há cura, nos sentimos impotentes quando ela se abate sobre pessoas que amamos. Muitas vezes, fingimos que ela não existe, e nossas políticas governamentais tendem a refletir essa falta de vontade de lidar com a situação.

Consequentemente, o bem-estar das pessoas que vivem com demência recai, em grande parte, sobre os familiares, o que muitas vezes acaba isolando tanto o paciente quanto o cuidador. E o isolamento, como sabemos, traz consigo enormes riscos. O isolamento não apenas acelera o declínio cognitivo dos acometidos pela doença como também torna os cuidadores cada vez mais vulneráveis ​​ao desenvolvimento da demência.

As políticas públicas devem, portanto, se esforçar para transferir o cuidado da demência dos cuidadores familiares para a comunidade em geral. Eu adoraria ver políticas que se concentrassem na construção e no aumento de intervenções psicossociais comunitárias.

Continua após a publicidade

Como isso funcionaria na prática?

Isso significa criar programas para portadores de Alzheimer que facilitem a conexão com o mundo exterior. Idealmente, uma conexão intergeracional poderia ajudar a despertar um senso de significado e propósito tanto nos pacientes quanto nos membros da geração mais jovem. Tais intervenções, acredito eu, aumentariam a qualidade de vida e até mesmo retardariam o declínio cognitivo. E, claro, também aliviariam a enorme carga sobre os cuidadores familiares, que atualmente precisam fazer (e ser) tudo pela pessoa de quem cuidam.

Qual foi o insight obtido com a sua experiência entre pacientes e cuidadores que mais a motiva a seguir em frente?

Trabalho com cuidadores de pessoas com demência há quase 15 anos. E o tema comum que encontro — e o que me motivou a escrever o livro — é o quanto o Alzheimer altera também o cérebro do cuidador. Por boas razões, a atenção médica se concentra no cérebro dos afetados e em como a doença rouba a identidade das pessoas. Mas esse não é o único cérebro que está sendo afetado.

Ao longo dos anos, muitos cuidadores me confessaram que sentem que estão “perdendo a cabeça” — perdendo sua identidade, sua sanidade, sua compaixão, sua noção da realidade e sua capacidade de manter a calma e o bom senso. Em resumo, os transtornos por trás da demência apresentam desafios tanto para o cérebro afetado quanto para o cérebro saudável do cuidador.

Esse é o grande tema de Viagens a Terras Inimagináveis, não?

Meu livro examina esse fenômeno, essa dinâmica entre o cérebro do paciente e o do cuidador. No meu trabalho clínico com cuidadores e na minha pesquisa sobre o cérebro humano, descobri que suas dificuldades para aceitar e se adaptar à doença não decorrem de algo errado com o cuidador, mas de barreiras naturais que nosso cérebro apresenta: essa doença exige que abandonemos os preconceitos, as expectativas e os hábitos que geralmente permitem que o cérebro saudável funcione e prospere.

Em outras palavras, os cuidadores têm bons motivos para achar o cuidado difícil e, às vezes, impossível. Eu queria fornecer aos cuidadores decepcionados, exaustos e cheios de culpa uma estrutura neurológica que os ajudasse a compreender e normalizar os momentos em que sentem que falharam como cuidadores. E talvez isso lhes conceda a autocompaixão que a maioria dos cuidadores raramente se concede.

Continua após a publicidade

Com a chegada de novos medicamentos para o Alzheimer, você acredita que mudaremos o destino dos pacientes e cuidadores?

Gostaria de poder dizer algo mais otimista, mas, no momento, os medicamentos não são uma solução. Não há evidências conclusivas de que eles retardem ou revertam significativamente a doença de Alzheimer. Não digo que devemos perder toda a esperança de uma cura ou cura parcial, mas também não devemos ser ingênuos quanto à complexidade fisiológica de uma doença como o Alzheimer e as demências relacionadas. É preciso ter em mente que nossa compreensão do cérebro, sem falar nas doenças em si, ainda está em estágio inicial. E se um avanço virá amanhã ou daqui a 20 anos não é algo que possamos prever.

A luta continua então…

Existem 57 milhões de pessoas vivendo com demência em todo o mundo, o que significa inúmeros cuidadores familiares que lutam todos os dias. Que a pesquisa sobre medicamentos continue inabalável, mas façamos tudo o que pudermos hoje para aliviar a carga dos cuidadores por meio de apoio real — ou seja, estabelecendo programas psicossociais interativos que conectem pessoas que vivem com demência entre si e com o mundo exterior.

Também peço veementemente às comunidades que promovam programas educacionais, grupos de apoio e, principalmente, um descanso, ou seja, cuidadores profissionais que possam substituir o cuidador familiar. Quanto mais os cuidadores familiares sentirem que não estão sozinhos e têm um apoio, mais bem equipados estarão para lidar com a doença.

Compartilhe essa matéria via:

 

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

OFERTA RELÂMPAGO

Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*
Apenas 1,99/mês*

Revista em Casa + Digital Completo

Receba 4 revistas de Veja no mês, além de todos os benefícios do plano Digital Completo (cada revista sai a partir de R$ 7,48)
A partir de 29,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$23,88, equivalente a R$ 1,99/mês.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.