‘O Alzheimer altera também o cérebro do cuidador’
Poucas pessoas se debruçam tanto sobre os desafios dos cuidadores de pessoas com demência como Dasha Kiper, autora do livro 'Viagens a Terras Inimagináveis'

Não nascemos preparados para encarar e entender um cérebro com Alzheimer. E é devido a esse lapso cognitivo e emocional que inúmeras famílias desmoronam quando se vêem tragadas pela rotina de cuidados com um ente querido diagnosticado com uma demência.
Esse é um dos principais insights da americana Dasha Kiper em Viagens a Terras Inimagináveis, recém-publicado pela editora Todavia. Diferentemente de inúmeras obras que focam nas vítimas do Alzheimer, seu livro é uma joia rara por mergulhar na desafiadora relação entre o cérebro doente e aquele que precisa prestar socorro a ele – o do cuidador.
E por que isso importa tanto? Porque ainda não falamos o suficiente sobre cuidar de quem cuida. Um trabalho – pois, como frisa Dasha, também se trata de trabalho – que na maioria das vezes é assumido por um familiar.
A imersão de Kiper pelo tema parte de sua própria experiência como cuidadora de um senhor de 90 anos e se ramifica a partir do seu trabalho de suporte a outros cuidadores, hoje viabilizado sob a associação The Caring Kind.
Tem o mérito de se ancorar nas descobertas da neurociência sem abrir mão dos sensíveis e complicados fatores humanos que permeiam a relação paciente-cuidador – no melhor estilo de autores como o neurologista Oliver Sacks, de quem bebe inclusive o título do livro.
Nessa jornada, compartilha histórias reais que acompanhou, sempre marcadas pelo cabo de guerra entre o estresse e o amor de um parceiro ou filho, entrelaçadas a aprendizados sugeridos por grandes nomes da literatura (de Borges a Tchekov).
Não se trata de um manual do cuidador. Pelo contrário, essa é uma obra que parte da dificuldade intrínseca de compreendermos como opera uma mente tomada pela demência para propor reflexões, apoios e caminhos de interação e acolhimento no dia a dia.
“Quando pensamos no Alzheimer, geralmente pensamos que ele apaga o eu. Mas o que acontece na maioria dos casos é que o eu se divide em diferentes eus; alguns deles reconhecemos, outros, não”, escreve Kiper.
Diante do avanço do Alzheimer e de outras demências pelo globo – projeta-se um aumento de 10 milhões de novos casos por ano na esteira do envelhecimento populacional -, as discussões e propostas da autora não podem ser esquecidas.
Com a palavra, Dasha Kiper.

Levando em consideração sua experiência com o universo da demência, qual seria o maior desafio para um cuidador hoje?
Existem tantos desafios que é difícil apontar o maior. Mas acho que devemos começar com algo enganosamente simples: o desafio de fazer com que a sociedade e os próprios cuidadores reconheçam que cuidar é um trabalho. Pode parecer óbvio, mas tendemos a desvalorizar o trabalho envolvido no cuidado porque somos condicionados a vê-lo como um serviço que devemos às nossas famílias. Cuidar não é apenas um trabalho desafiador; é também perigoso.
Quando uma doença corrói a capacidade de alguém pensar, lembrar, raciocinar, tomar decisões, usar o julgamento e se envolver nas atividades simples da vida diária, cabe aos cuidadores funcionar por duas pessoas. Isso, no entanto, é simplesmente insustentável. Não é de surpreender que cuidadores de pessoas com demência apresentem níveis muito altos de estresse crônico, o que afeta todos os aspectos do seu bem-estar. De fato, estudos mostram que cuidadores sofrem desproporcionalmente com custos para sua saúde física, mental e cognitiva.
Você acredita que a criação de políticas públicas e cursos para cuidadores ajudaria a mudar essa difícil realidade?
Sim. Como sociedade, não queremos lidar com os problemas da velhice, especialmente os transtornos demenciais. A demência nos causa profundo desconforto. Nos assusta e, como não há cura, nos sentimos impotentes quando ela se abate sobre pessoas que amamos. Muitas vezes, fingimos que ela não existe, e nossas políticas governamentais tendem a refletir essa falta de vontade de lidar com a situação.
Consequentemente, o bem-estar das pessoas que vivem com demência recai, em grande parte, sobre os familiares, o que muitas vezes acaba isolando tanto o paciente quanto o cuidador. E o isolamento, como sabemos, traz consigo enormes riscos. O isolamento não apenas acelera o declínio cognitivo dos acometidos pela doença como também torna os cuidadores cada vez mais vulneráveis ao desenvolvimento da demência.
As políticas públicas devem, portanto, se esforçar para transferir o cuidado da demência dos cuidadores familiares para a comunidade em geral. Eu adoraria ver políticas que se concentrassem na construção e no aumento de intervenções psicossociais comunitárias.
Como isso funcionaria na prática?
Isso significa criar programas para portadores de Alzheimer que facilitem a conexão com o mundo exterior. Idealmente, uma conexão intergeracional poderia ajudar a despertar um senso de significado e propósito tanto nos pacientes quanto nos membros da geração mais jovem. Tais intervenções, acredito eu, aumentariam a qualidade de vida e até mesmo retardariam o declínio cognitivo. E, claro, também aliviariam a enorme carga sobre os cuidadores familiares, que atualmente precisam fazer (e ser) tudo pela pessoa de quem cuidam.
Qual foi o insight obtido com a sua experiência entre pacientes e cuidadores que mais a motiva a seguir em frente?
Trabalho com cuidadores de pessoas com demência há quase 15 anos. E o tema comum que encontro — e o que me motivou a escrever o livro — é o quanto o Alzheimer altera também o cérebro do cuidador. Por boas razões, a atenção médica se concentra no cérebro dos afetados e em como a doença rouba a identidade das pessoas. Mas esse não é o único cérebro que está sendo afetado.
Ao longo dos anos, muitos cuidadores me confessaram que sentem que estão “perdendo a cabeça” — perdendo sua identidade, sua sanidade, sua compaixão, sua noção da realidade e sua capacidade de manter a calma e o bom senso. Em resumo, os transtornos por trás da demência apresentam desafios tanto para o cérebro afetado quanto para o cérebro saudável do cuidador.
Esse é o grande tema de Viagens a Terras Inimagináveis, não?
Meu livro examina esse fenômeno, essa dinâmica entre o cérebro do paciente e o do cuidador. No meu trabalho clínico com cuidadores e na minha pesquisa sobre o cérebro humano, descobri que suas dificuldades para aceitar e se adaptar à doença não decorrem de algo errado com o cuidador, mas de barreiras naturais que nosso cérebro apresenta: essa doença exige que abandonemos os preconceitos, as expectativas e os hábitos que geralmente permitem que o cérebro saudável funcione e prospere.
Em outras palavras, os cuidadores têm bons motivos para achar o cuidado difícil e, às vezes, impossível. Eu queria fornecer aos cuidadores decepcionados, exaustos e cheios de culpa uma estrutura neurológica que os ajudasse a compreender e normalizar os momentos em que sentem que falharam como cuidadores. E talvez isso lhes conceda a autocompaixão que a maioria dos cuidadores raramente se concede.
Com a chegada de novos medicamentos para o Alzheimer, você acredita que mudaremos o destino dos pacientes e cuidadores?
Gostaria de poder dizer algo mais otimista, mas, no momento, os medicamentos não são uma solução. Não há evidências conclusivas de que eles retardem ou revertam significativamente a doença de Alzheimer. Não digo que devemos perder toda a esperança de uma cura ou cura parcial, mas também não devemos ser ingênuos quanto à complexidade fisiológica de uma doença como o Alzheimer e as demências relacionadas. É preciso ter em mente que nossa compreensão do cérebro, sem falar nas doenças em si, ainda está em estágio inicial. E se um avanço virá amanhã ou daqui a 20 anos não é algo que possamos prever.
A luta continua então…
Existem 57 milhões de pessoas vivendo com demência em todo o mundo, o que significa inúmeros cuidadores familiares que lutam todos os dias. Que a pesquisa sobre medicamentos continue inabalável, mas façamos tudo o que pudermos hoje para aliviar a carga dos cuidadores por meio de apoio real — ou seja, estabelecendo programas psicossociais interativos que conectem pessoas que vivem com demência entre si e com o mundo exterior.
Também peço veementemente às comunidades que promovam programas educacionais, grupos de apoio e, principalmente, um descanso, ou seja, cuidadores profissionais que possam substituir o cuidador familiar. Quanto mais os cuidadores familiares sentirem que não estão sozinhos e têm um apoio, mais bem equipados estarão para lidar com a doença.