Maconha: um balanço dos efeitos da planta, segundo a neurociência
Estudos jogam luz sobre benefícios e prejuízos do uso contínuo da planta. Neurocientista Sidarta Ribeiro expõe os consensos até o momento

As últimas décadas foram de altos e baixos quando se fala em maconha: primeiro, os esforços da guerra às drogas demonizaram a planta como uma porta de entrada para os vícios. Depois, os primeiros estudos lançaram luz sobre seus efeitos positivos. E teve gente pregando uma suposta panaceia. Agora, a consolidação dos achados científicos traz sobriedade à discussão, e o neurocientista Sidarta Ribeiro é um dos mais respeitados propagadores dessas evidências.
Em seu livro, As Flores do Bem: A Ciência e a História da Libertação da Maconha, publicado pela Editora Fósforo, o professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte compila esse enredo, recontando a histórica relação entre os humanos e a planta, os reveses que levaram à sua marginalização e o renascimento que a tem promovido como remédio.
Na obra – e na vida -, o biólogo se esforça para rebater os mitos e informar seus leitores e ouvintes sobre efeitos – tanto positivos, quanto negativos – da Cannabis no corpo, num duro desafio de se afastar dos discursos apaixonados e alarmantes que costumam permear essa discussão.
Com a palavra, Sidarta Ribeiro.
Um estudo recente mostrou que o uso crônico de maconha pode afetar a memória. Há consenso a esse respeito?
Sabemos que a Cannabis com alto teor de THC causa impacto agudo na memória de trabalho nos primeiros 40-50 minutos após o consumo, efeito que pode se estender dependendo da tarefa avaliada. Isso está associado a seus efeitos no pensamento divergente — há uma compensação entre redução na memória operacional e aumento na criatividade. O tamanho do efeito na memória operacional é pequeno, comparável a outros fatores como álcool ou alimentação inadequada. O estudo é valioso, mas não alarmante.
Então os prejuízos não são graves?
O debate atual gira em torno de ponderar se esses prejuízos são permanentes. A literatura dos últimos 10 anos sugeria que usuários crônicos recuperavam a memória operacional após interromper o uso. Este novo estudo questiona essa conclusão, o que é relevante para a regulamentação, mas o trabalho tem limitações importantes: ele não especifica a composição da Cannabis usada pelos participantes, estabelece correlações que não necessariamente indicam causalidade e associa erroneamente maior atividade cerebral com melhor desempenho.
O que é Cannabis de alta potência? Ela é mais perigosa?
A Cannabis contém até 500 compostos, entre canabinoides, terpenos e flavonoides. Quando se fala em “alta potência”, geralmente referem-se ao teor de tetrahidrocanabinol (THC), porém, os efeitos do THC são modulados por outros componentes. Uma cannabis com 20% THC e 20% canabidiol (CBD) é mais segura que uma com 30% THC e 0% CBD, pois o CBD mitiga os riscos do THC. A regulação deveria focar nas proporções entre componentes, não apenas no THC. Existem variedades com altos teores de THC, CBD, ou combinações específicas. Cada uma tem aplicações diferentes e perfis de segurança distintos que precisam ser melhor investigados.
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A maconha realmente pode causar surtos psicóticos?
A antiga afirmação de que a Cannabis causa esquizofrenia foi refutada. Estudos com centenas de milhares de pessoas mostram que a correlação ocorre porque pessoas com esquizofrenia tendem a usar mais cannabis, provavelmente como automedicação, já que o CBD pode ajudar nos sintomas. O THC em altas doses, por outro lado, pode induzir sintomas psicóticos agudos, mas isso é distinto de desenvolver esquizofrenia. Pessoas com predisposição à psicose devem evitar THC, assim como evitam álcool.
Então a maconha não causa esquizofrenia?
Não. É interessante observar que, nas últimas décadas, houve um aumento no consumo de cannabis, mas isso não elevou a prevalência de esquizofrenia na população, que permanece entre 1% e 2% a depender do país.
Quais grupos deveriam evitar o uso?
Primeiro, gestantes e lactantes. Existem boas evidências de que o uso pode estar ligado a malformações, então é bom evitar. Jovens também são outro grupo de risco. Existem boas evidências de síndrome amotivacional, quando a pessoa não tem vontade de fazer nada, com prejuízos acadêmicos. Agora, é importante notar que há exceções: se houver indicação médica, a situação é completamente diferente.

Jovens adultos também estão no grupo de risco?
Do ponto de vista da ciência, a adolescência termina lá para os 25, então é bom evitar até essa idade. Maconha é bom para adultos e velhos. Agora, se a pessoa for usar é preciso reduzir danos – e é por isso que eu acho importante a regulação: se houver uma boa quantidade de CBD em toda a maconha disponível, isso já torna o uso muito mais seguro.
E pessoas com depressão?
Esse é um grupo interessante. Existem várias evidências, tanto em modelos animais quanto em seres humanos, de que a maconha em baixas dosagens e sobretudo quando tem THC ela pode ser um ótimo antidepressivo. Contudo, quando a dose é muito alta, a pessoa pode entrar em síndrome amotivacional e isso cursa com depressão.
Hoje, quais os principais efeitos terapêuticos comprovados?
Durante décadas, o proibicionismo global insistiu que a Cannabis não tinha valor medicinal, mas esse debate foi superado quando o canabidiol provou eficácia contra epilepsia, mas vai além disso. Israel, por exemplo, trata depressão com Cannabis há 20 anos na prática clínica, mesmo antes de todos os ensaios formais. As aplicações mais consolidadas incluem o controle de dores crônicas e os efeitos colaterais da quimioterapia. Novas pesquisas revelam potencial antitumoral para certos tipos de câncer e aplicações promissoras no autismo – especialmente nos casos com componentes epilépticos. Novas frentes de pesquisa também surgem para condições neurodegenerativas, como Parkinson e Alzheimer, e para síndromes como Tourette e Crohn.
Qual a maneira mais responsável de encarar a Cannabis?
É crucial que os jovens compreendam: a cannabis com THC estimula neurogênese, mas cérebros jovens já têm neurônios e sinapses suficientes, por isso vale a pena adiar o uso ou usar com o máximo de moderação. Para idosos, o cenário se inverte. Pessoas com dores crônicas, problemas articulares, depressão ou declínio cognitivo podem se beneficiar significativamente. A Cannabis é revolucionária na geriatria. O desafio é convencer jovens a começar mais tarde e os mais velhos, de que eles podem se beneficiar.