Era uma vez um jovem que escapou de Auschwitz e ganhou um Prêmio Nobel
O húngaro Imre Kertész deixa um testemunho ocular e literário da vida sob o Holocausto em 'Ausência de Destino', livro que ganha nova tradução e edição

“Vislumbrei um edifício, uma estação no fim do mundo (…) Era acanhada, cinzenta, vazia, com pequenas janelas fechadas e um telhado de inclinação engraçada (…) No amanhecer enevoado, ganhava, a princípio, contornos sólidos, arredondados, passava do cinza ao lilás, e as janelas adquiriam um brilho avermelhado à medida que sobre elas caíam os primeiros raios (…) Perguntaram se eu eu não conseguia ver o nome do lugar. Divisei duas palavras na luz incipiente, na parede debaixo do teto, do lado mais estreito do edifício, voltadas para nós: Auschiwitz-Birkenau (…)”.
Quando se depara com esse trecho de Ausência de Destino, o primeiro livro do húngaro Imre Kertész (1929-2016) e o último a ganhar uma nova edição no Brasil, é inevitável sentir o calafrio de quem hoje conhece os rumos tenebrosos da história. Aquele arrepio que talvez só inspire a inscrição no portal do inferno de Dante. Mas o inferno de Auschwitz foi real.
A obra publicada pela Editora Carambaia, vertida ao português por Paulo Schiller, acompanha, em primeira pessoa, um jovem de 14 anos de origem judia que, arrebanhado pelo exército alemão, é encaminhado aos trens que levarão aos campos de concentração da Segunda Guerra Mundial.
Um adolescente que chega a pisar em Auschwitz, o antro de extermínio dos judeus, e, ao mentir a idade, escapa por um triz para um campo de trabalho forçado. Em vez da câmara de gás, a escravidão acompanhada de golpes de soldados, sopas ralas, feridas e doenças.
É um relato ficcional, mas totalmente inspirado na própria desventura de Kertész, esse escritor que virou sinônimo de testemunho ocular e literário do Holocausto e foi reconhecido com o Prêmio Nobel de Literatura de 2002.
O autor, ou melhor, seu narrador-protagonista comeu o pão que o diabo do nazismo amassou. “Acabei comendo, embora nunca tivesse visto pão como aquele: quadrado, como se tivesse sido feito de uma lama preta, recheado de tiras de palha e sementinhas que estalavam sob os dentes; mas era pão e, ao final da longa caminhada, eu sentia fome”, registra.
O itinerário pelos campos de concentração que se desvela a cada página de Ausência de Destino é o percurso da dor existencial, mas também do tédio, das necessidades do corpo, das amizades e inimizades, das expectativas… Não caímos no inferno dantesco, mas num lugar em que “tudo é possível e verossímil, também assim, revirado”. Talvez seja por isso que, para Kertész, só a ficção seria capaz de refletir as experiências do Holocausto, algo que Schiller comenta no posfácio do volume.
O tradutor aprendeu o húngaro em casa, na infância, dos pais recém-chegados ao Brasil, como expõe no ensaio Labirintos na Planície. Médico e psicanalista, é um dos poucos brasileiros a transpor ao português autores dessa língua que, assim brincou Chico Buarque no romance Budapeste, é aquela que até o diabo respeita.
No mesmo texto, ele dá uma dimensão do que é traduzir o idioma: “O húngaro conta com um único tempo verbal para expressar o passado. Os verbos não se conjugam no futuro. Não existe o verbo ‘haver’. Não há preposições. O artigo não faz distinção de gênero. Em meio a essa simplicidade enganosa, as ciladas, o inusitado, espreitam em outros lugares”.
E foi nessa língua que Imre Kertész deixou uma obra que nos permite vislumbrar o que foi (sobre)viver em um campo de concentração. Justamente para nunca nos esquecermos disso.
Com a palavra, Paulo Schiller.

No posfácio, o senhor comenta que Imre Kertész professava que só a ficção poderia transmitir os horrores do Holocausto. Em que medida Ausência de Destino é uma peça fundamental para a compreensão desse terrível capítulo da história?
Kertész discute a questão em A Língua Exilada, que traduzi para a Companhia das Letras. Ele argumenta que toda tentativa de se reproduzir com fidelidade a experiência concentracionária será limitada, pois algo irá sempre escapar. Alguma coisa ficará fora do alcance das palavras, fora da possibilidade de representação. É da mesma natureza do conhecimento adquirido pela experiência. Se alguém nunca tomou café, não haverá aula, livro ou curso que fará com que ele saiba que gosto tem. Basta experimentar e terá certeza, e isso é algo não compartilhável.
Em Ausência de Destino, há um paradoxo: trata-se sem dúvida de uma autobiografia do autor. Entretanto, ele evita o compromisso de exatidão ao chamar o livro de um romance. Em A Língua Exilada, ele diz que um filme como A Vida é Bela representa melhor a vida no campo do que um
relato histórico. Sabemos que, no que diz respeito às relações humanas, a ficção nos aproxima mais dos fatos que a narrativa documental.
Falamos de um autor reverenciado com um Prêmio Nobel. Qual é a grande assinatura de Imre Kertész no mapa da literatura global?
Pensando no Nobel, há premiações essencialmente literárias, em que a excelência do texto leva ao prêmio. Há, por outro lado, prêmios que têm um caráter mais político, como no caso de Winston Churchill em 1953. Claro que o texto tem de ser bom, mas não primoroso. Kertész foi a combinação do ineditismo para um húngaro com a importância política, filosófica e social de seus escritos: o conjunto deles, além de Ausência de Destino.
Como foi transpor esse livro para o português?
Entre os livros que traduzi do húngaro, este talvez tenha sido o mais fácil. Kertész procurou reproduzir a narrativa de um jovem adolescente, num texto bastante simples e direto, sem grandes desafios.