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Encontro de saberes: um bestiário colonial ilustrado por J.Borges

Último livro com desenhos do mestre da xilogravura pernambucano, morto há pouco mais de um mês, celebra natureza e cultura popular brasileiras

Por Diogo Sponchiato Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 28 ago 2024, 16h55

Quase 400 anos separam a obra de um português que se tornou senhor de engenho e coletor de impostos na Bahia dos desenhos de um artista pernambucano cujo nome se confunde com a história do cordel e da xilogravura no país. E eles se encontram, graças à sacada de um editor, no Bestiário de Brandônio – Fauna Maravilhosa no Brasil do Século XVII, da Livros da Raposa Vermelha/WMF Martins Fontes. 

De um lado, Ambrósio Fernandes Brandão, o autor de Diálogos das Grandezas do Brasil, obra escrita em 1618 que descreve a fauna, a flora e as riquezas naturais da então colônia lusitana. Do outro, José Francisco Borges, mais conhecido pela assinatura J. Borges, autor de um manancial de desenhos que retratam as criaturas, as paisagens e as tradições nordestinas – a ponto de eles mesmos se tornarem marca registrada desse torrão do país.

No meio, o editor argentino Alejandro García Schnetzer, responsável pelo casamento entre as duas obras no novo volume – devidamente acompanhado pela historiadora Iara Schiavinatto, professora da Unicamp que assina o esclarecedor prefácio.

Bestiário de Brandônio - Fauna maravilhosa no Brasil do século XVII

bestiario

O encontro é o seguinte: Schnetzer garimpou trechos dos Diálogos dedicados a perfilar os bichos do ar, das águas e da terra tupiniquins. Um desfile de jacus, tucanos, peixes, tartarugas, jacarés, capivaras, porcos do mato, tatus… E convidou uma seleção de xilogravuras de J.Borges, a quem perdemos há pouco, a acompanhar essa fauna. O resultado está nas páginas do Bestiário de Brandônio, livro que opera aquele tipo de reunião que só os livros promovem.

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A obra é também, como observa a pesquisadora e docente da Unicamp, uma celebração da sabedoria popular, ingrediente do qual Brandão e J. Borges beberam ao pintar seus retratos. E, se no passado os bestiários ostentavam um tom de lição de moral, a presente edição não deixa de legar lições urgentes, como a de valorizar e respeitar uma natureza que, sob ataque, corre o risco de virar história.

Com a palavra, Iara Schiavinatto.

Iara_Schiavinatto
A historiadora e professora da Unicamp Iara Schiavinatto, autora do prefácio do livro (Foto: Gi Bertinato/Reprodução)
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Em que medida esse bestiário colonial se conecta e conversa com a fauna e a flora criadas por J.Borges?

O livro resulta de uma inteligência editorial de Alejandro García Schnetzer, responsável pela articulação entre Diálogos da Grandeza do Brasil, de Ambrósio Fernandes Brandão, e um conjunto selecionado de gravuras de J. Borges. Seu gesto editorial medeia estas obras de dois autores separados por séculos. Nas obras, aqui mobilizadas, a fauna e a flora são assuntos de primeira grandeza, sem se restringir, porém, à paisagem, ao mero contexto ou à condição de ilustração. Elas tecem existências e simbioses entre os seres viventes no passado (no caso, de Brandão) e no presente (no caso, de J. Borges).

No prefácio, a senhora explica que, tradicionalmente, bestiários têm um tom moralizante. Evocando as reflexões sobre as mudanças climáticas com as quais encerra seu texto, podemos dizer que o livro respeita essa característica ao valorizar nossa fauna e, ainda que indiretamente, advertir sobre o papel do homem na preservação da natureza?

O Bestiário insere-se num gênero textual e narrativo do passado, composto por animais e elementos da fauna, tendo por fim uma lição moralizante para quem o escuta, comenta ou o lê. Esse gênero nos dá uma dimensão sobre os seres viventes e as relações estabelecidas entre eles.

Com a consolidação e o amplo uso da disciplina da história natural levados a cabo em centros de estudos, notadamente nas universidades europeias entre os séculos XVIII e XIX, passa-se a conceber e apreender a natureza sob as categorias da coleta, da catalogação, da classificação e da descrição. Este processo disciplinar embasou em boa parte os usos extrativistas da natureza e, em boa medida, seus modos de exploração.

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Contudo, o livro é agora publicado em meio a inéditas condições contemporâneas de um novo regime climático de eventos extremos, o que altera profundamente a nossa compreensão ecológica do ambiente. Nem Ambrósio Fernandes Brandão tampouco J. Borges lidaram com essa situação.

O encontro dessas obras no Bestiário, porém, dá elementos para o leitor evocar uma constelação variada de relações entre os seres viventes no presente, sem se filiar à ordenação da história natural ou às práticas extrativistas e neoextrativistas. Nesse sentido, o livro lançado traz para o leitor outras maneiras de imaginar e lidar com a coexistência entre os seres viventes.

Ambrósio Brandão bebeu de fontes populares para escrever seus Diálogos, assim como J.Borges é um patrimônio da cultura popular brasileira. Podemos dizer que o lançamento é também uma reverência ao conhecimento e a arte que surgem do povo?

De modos diversos e com diferentes abordagens, tanto para Ambrósio Fernandes Brandão como para J. Borges os saberes populares são valorizados enquanto fontes de compreensão de um mundo no qual natureza e cultura não são universos separados e polaridades antagônicas. Pelo contrário, operam entremeadas entre si. É interessante notar que este livro situa o leitor frente a passados possíveis, encarados a partir do presente, sem deixar de entreabrir uma sensibilidade de futuros possíveis.

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