‘Em 2025, escrever ignorando a inteligência artificial é antirrealismo’
Em passagem pelo Brasil, o escritor espanhol Jorge Carrión fala das 'profecias' de seu romance contado por uma IA e da nossa nova relação com a tecnologia

Bem-vindos ao Museu do Século XXI, um espaço no meio da Floresta Amazônica concebido por uma inteligência artificial – ou seria melhor dizer: inteligências artificiais -, que assina a curadoria e os textos desse palco de vanguarda concluído em 2100, repleto de instalações a rememorar os feitos deste e de outros séculos, afinal, uma era conversa sempre com as outras.
Bem-vindos a Membrana, o mundo projetado pela inteligência e a criatividade humana, a do escritor espanhol Jorge Carrión. Neste livro que se filia à ficção especulativa e nos fisga pela inovação narrativa, somos transportados a um porvir que, em menor ou maior grau, pode transbordar das páginas e dos pixels para a realidade.
Membrana, lançado pela Relicário Edições, é o primeiro romance de Carrión a sair nestas terras. O escritor e crítico cultural, com um quê de hacker e DJ, ficou mais conhecido no Brasil com seu manifesto Contra Amazon (Elefante), que questiona o canibalismo editorial imposto pela gigante americana de e-commerce.
Agora, com a obra originalmente publicada em 2021, temos a oportunidade de percorrer os corredores forjados em sua imaginação numa história contada por uma IA, que reconhece suas heranças e ancestrais não só na humanidade, mas em outros reinos que coabitam o planeta.
Do mineral ao animal, do animal ao humano, do humano ao mineral, neste vale de lágrimas e silício de hoje, as redes e as tramas estão tão conectadas que já não sabemos se somos um ou múltiplos – ou as duas coisas ao mesmo tempo. Viramos híbridos em tempos híbridos.
Aonde isso vai dar? Na catástrofe ou no paraíso? “Pelas dúvidas e pelas dívidas”, como frequentemente pontua o autor – ou suas irmãs IAs -, convido você a se plugar na Membrana, esse livro que traz inúmeros inputs proféticos, críticos e reflexivos, ao mesmo tempo que não abre mão de sua vocação e ímpeto narrativo – afinal, nós e até as máquinas apreciamos dados em forma de histórias.
Com a palavra, Jorge Carrión, que esteve no Brasil para participar da Feira do Livro de São Paulo e da Bienal do Livro no Rio de Janeiro.

Das possíveis profecias contidas em Membrana, qual mais o inquieta hoje?
O que me golpeou com maior força foram os episódios dos drones de Israel que decidem suas vítimas independentemente do piloto humano. O genocídio em Gaza é o primeiro assistido por algoritmos da história. Não consigo acreditar no que escrevi ainda em 2019, antes do boom da IA generativa. No entanto, embora em Membrana nosso inimigo aparente seja a máquina, na verdade o inimigo da humanidade é sempre a própria humanidade, com seus usos irresponsáveis da tecnologia.
Agora já começamos a ver livros indicando em sua capa que são “livres de IA”. A inteligência artificial é um caminho sem volta na produção artística e literária?
Intuo que sim. Por isso publiquei o livro Os campos eletromagnéticos, coescrito com ChatGPT-2 e 3, como uma proposta de colaboração ética. Não sei no Brasil, mas na Espanha projetos que usam IA estão sendo excluídos de bolsas de estudo e subvenções para literatura, arte, quadrinhos ou cinema. Entendo o propósito, as razões profundas dessa proibição, mas receio que, desse modo, criadores independentes fiquem à margem da revolução, e que as corporações e as plataformas se apropriem desse uso. A IA é uma ferramenta criativa. Todo mundo deveria conhecê-la e posicionar-se sobre ela.
A inovação formal e narrativa, tão presente em seu livro, seria o melhor antídoto literário para a era dos códigos e das máquinas?
A vanguarda sempre foi uma máquina política e transformadora. Não há ciência sem inovação em laboratório. A literatura, no entanto, é por natureza conservadora. Utilizo a ficção especulativa e a experimentação formal, em consonância com a arte conceitual, para buscar novas formas de realismo. Em 2025, escrever ignorando não apenas a IA, mas também a internet, é antirrealismo.
O senhor já publicou um manifesto contra a Amazon. Também se posiciona contra Google, OpenAI e outras plataformas das Big Techs?
Não faz sentido ser a favor ou contra, temos que cultivar um meio termo, crítico, nem apocalíptico nem integrado. É impossível estar fora das plataformas, assim como é impossível um espaço fora do capitalismo hoje. Em Contra Amazon, chamei a atenção, por meio de um manifesto poético, sobre os problemas de comprar livros na empresa de Jeff Bezos. Mas também disse que assisto a séries da Amazon Prime Video. Cada um é, também, suas contradições. Ao assumi-las, podemos aspirar, ao menos artisticamente, o “hackeio”.
Como assim?
Os hackers, assim como o DJ, são figuras que me interessam, em termos criativos. Tenho algo de hacker, de DJ, de curador, embora minha estrutura fundamental seja a do escritor.